Rescaldo do II Congresso
Na sequência do II Congresso da FRELIMO, onde a sua estratégia de intensificar a guerra e de a fazer prioritariamente no Planalto dos Macondes saiu derrotada, Kavandame foi suspenso do movimento em 3 de Janeiro de 1969, ficando à espera de uma decisão final dos seus dirigentes. Mas o seu destino foi ultrapassado pelos factos – em 3 Fevereiro Mondlane foi assassinado em Dar es Salam e Kavandame, justa ou injustamente tomado como suspeito de cumplicidade, afastou-se do quartel-general do movimento, refugiandose junto do seu povo nas margens do rio Rovuma.
A FRELIMO debatia-se desde 1966 com uma rivalidade latente e com uma desunião motivada pelo apego dos seus elementos às respectivas ligações tribais. A tribalização era considerada um dos maiores entraves ao sucesso da luta pela “facção” da FRELIMO chefiada por Marcelino dos Santos e Uria Simango. Kavandame era, antes de tudo o mais, um chefe tribal.
Kavandame e Mondlane
Kavandame julgava Mondlane demasiado pró-americano, isto é, demasiado ocidentalizado. Acusava-o ainda de ser demasiado mole contra os portugueses, de gastar demasiado tempo e esforços em conquistar as populações em vez de se concentrar na luta armada.
Os chefes macondes, com Kavandame à cabeça, sentiam que o seu povo suportava o esforço principal da guerra e queriam que esses esforços se concentrassem na sua área, no Norte, em vez de se estenderem para outras zonas, como propunham os dirigentes da FRELIMO oriundos do Sul.
Razões para as divergências entre Kavandame e Mondlane
Mas as razões para as divergências entre Kavandame e Mondlane são ainda mais profundas do que as suas estratégias. As divergências dos dois homens e dos seus apoiantes têm raízes na história, na cultura, no modo de ver o mundo de cada um deles.
Kavandame era um chefe africano tradicional. O chefe tribal de um povo que desenvolvera a sua cultura própria em confronto com outros povos, nomeadamente contra os macuas, mas que tinha um ténue contacto com os europeus, efectuado, aliás, através dos macuas. Eram estes que perseguiam os macondes para os escravizarem e venderem aos comerciantes árabes, franceses e portugueses. Só com a I Guerra Mundial os europeus ocuparam o território maconde, mas com reservas.
A Sociedade dos Africanos de Moçambique (SAM), de que Kavandame foi o chefe no início dos anos 60, batia-se para os macondes viverem livres. Ele queria a terra livre, queria Uhulu e Uhulu em xi-maconde e Uhuru em ki-swahili, as duas variações da sua língua que querem dizer o mesmo: liberdade.
Podemos pensar hoje que isto implicava a independência para Moçambique, e alguns jovens macondes formados nas missões católicas holandesas de Imbuho e Nangololo pensavam nisso, mas essa ideia ainda não era tão nítida para Kavandame e a sua sociedade, para quem Uhulu significava antes de mais liberdade para a terra dos macondes, não propriamente para Moçambique, uma entidade que pouco lhes dizia.
Para Kavandame, a primeira entidade identitária era o povo maconde, era essa a sua nação.
Esta crise de identidade entre os dois grupos de dirigentes da FRELIMO não foi ultrapassada pelo II Congresso.
Os macondes
A hierarquia e a organização social dos macondes tem por base a ancestralidade. A zona onde habitam forma um reduto que defende as suas povoações, os “changos”, do convívio de outros povos, mesmo dos vizinhos macuas, de que evitam toda a sorte de cruzamentos, considerando proscrito e desprezível todo aquele que o faça. A região planáltica em que vivem é pouco acessível e está naturalmente defendida por abundante vegetação. Por isso nunca estiveram sujeitos às invasões que todos os outros povos de Moçambique suportaram. Quem convive com o maconde acha-o altivo, detentor de forte e definida personalidade. É pois natural que um homem grande maconde, como Kavandame, não aceitasse de bom grado sujeitar-se a jovens urbanos, assimilados, iguais aos europeus, vindos do Sul para lhe dizerem o que ele devia fazer.
Aliança macondes-FRELIMO
A aliança de Kavandame com os dirigentes da FRELIMO foi, portanto, uma aliança táctica. Ele pretendia a liberdade do seu povo, enquanto os jovens dirigentes da FRELIMO apoiantes de Mondlane queriam um Moçambique independente à moda da Argélia, do Tanganica, do Quénia, com eles a substituírem os antigos colonos e a reproduzirem os seus comportamentos.
Kavandame integrou a FRELIMO, mas sem nunca deixar de lembrar que eram os macondes que suportavam o esforço principal da guerra, que combatiam, que viam as suas machambas destruídas pelos desfolhantes e que eram forçados a abandonar as suas terras e povoações bombardeadas e obrigados a juntarem-se em miseráveis acampamentos à volta dos quartéis portugueses. Mas eram os jovens do Sul que os comandavam…
Qualquer aliado é bom para ganhar a liberdade
Para conseguir os seus objectivos de ganhar a liberdade – a Uhulu – para os macondes, Kavandame integrou a FRELIMO em 1962. Quando percebeu que os seus dirigentes queriam estender a guerra para sul, para chegarem à terra deles, à Beira, a Tete, a Lourenço Marques, que para Kavandame eram cidades tão longínquas e estranhas como Nova Iorque, Moscovo ou Pequim, ele apresentou-se aos portugueses para, através deles, conseguir o que sempre quis: uma nação maconde.
Kavandame não foi um traidor
Kavandame foi um lutador pela liberdade dos macondes. Não podia ser um traidor moçambicano porque antes de tudo ele era maconde. Não tinha noção do que era ser moçambicano, que é uma criação portuguesa que os africanos assimilados tomaram também para si.
Um chefe como Kavandame era um obstáculo para a estratégia de Mondlane de erigir um estado-nação.
África – do colonialismo à independência
O conflito entre Kavandame e o grupo dirigente da FRELIMO é um bom revelador de algumas das grandes questões que se levantam à volta da História de África independente e descolonizada que se formou após a II Guerra Mundial.
A África negra a sul do Sara é um continente potencialmente tão ou mais rico que as outras regiões do globo e, quando começaram a soprar os “ventos da História” da descolonização, da liberdade e da independência, eram fundadas as esperanças num futuro melhor para os povos que foram escravizados durante séculos, sujeitos ao trabalho forçado e às culturas obrigatórias.
Existia até uma geração de líderes africanos que pareciam capazes de tomar o seu continente em boas mãos, de Nkrumah a Nyerere, de Lumumba a Senghor, que constituíam a primeira geração dos movimentos de libertação.
A primeira geração da libertação das colónias portuguesas
Também nas colónias portuguesas surgiram dirigentes de elevada craveira técnica e intelectual, como Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Eduardo Mondlane, Viriato da Cruz, os irmãos Pinto de Andrade, entre outros.
Tal como as gerações que tomaram conta das lutas pela independência das antigas colónias francesas, inglesas e belga, a geração de novos independentistas das colónias portuguesas é uma geração culta e informada. Europeia. Tão europeia e cosmopolita quanto as das outras potências coloniais, mas tal como elas não foi capaz nem de manter em funcionamento as estruturas administrativas deixadas pelas antigas potências coloniais, nem de criar outras. Não foi capaz de articular desenvolvimento com justiça.
Talvez a razão para o falhanço desta geração seja precisamente o tipo de preparação que teve, uma preparação à europeia que lhe deu uma visão europeia de África, que entrou em choque com a África real, a dos povos e tribos, dos régulos e sobas, dos ritos e hierarquias.
Itinerário e afirmação da africanidade – inventar povos e nações
O itinerário desta primeira geração começa com a afirmação da sua africanidade. É uma geração que regressa a África e é anticolonial porque tem maior consciência da exploração a que estavam sujeitas as populações africanas, mas também porque aspira a ascender socialmente e se sente bloqueada pelo domínio colonial exercido pela Metrópole, que lhe retira a possibilidade de serem dirigentes das novas nações. É esse o papel que se atribuem: serem dirigentes de nações que eles próprios vão criar e de povos que vão inventar.
Herdeiros do colonialismo
A geração de nacionalistas é assim herdeira do colonialismo e das fronteiras que ele estabeleceu na Conferência de Berlim. Embora se considere como restauradora de um novo orgulho africano, que vai puxar do fundo da memória as suas raízes africanas, que cria uma nova africanidade, esta geração destruiu as estruturas tradicionais dos povos africanos. Teve de as destruir de forma ainda mais radical e violenta do que os europeus tinham feito até aí, porque, para esta geração, tratava-se agora de legitimar uma nova realidade: novos países, novos dirigentes e não, como faziam os europeus, organizar uma exploração de riquezas.
Os chefes tradicionais e os novos nacionalistas africanos
A relação dos europeus com os africanos manteve, no essencial, as estruturas tradicionais e, mesmo depois da Conferência de Berlim, as fronteiras entre as possessões eram pouco definidas e facilmente transpostas. O que interessava eram os limites das concessões das grandes companhias. Os europeus viviam maioritariamente nas suas cidades junto ao mar e regulavam muitos dos assuntos com os povos indígenas através dos chefes tradicionais, numa estratégia de administração indirecta.
Qual a tribo dos nacionalistas?
Os novos dirigentes nacionalistas não se integravam nas estruturas tradicionais dos povos, ou eram mestiços, ou já não possuíam laços orgânicos com os seus grupos originários, não podiam por isso aspirar a serem seus chefes, nem estavam interessados nisso. O seu programa foi impor um novo país e integrar nele um novo povo, isto é, um somatório de povos sem qualquer cimento cultural a amalgamá-los (esse cimento seria a luta de libertação). Como esta imposição era vital para os dirigentes nacionalistas, eles usaram métodos violentos e brutais. As relações destes nacionalistas e dos seus movimentos com os chefes tradicionais, os régulos, os sobas, foi uma luta de vida ou de morte.
O conflito de Kavandame com a FRELIMO é exemplar dessa violência.
A questão do tribalismo
O tribalismo era um perigoso concorrente para os novos nacionalistas, a quem disputava o poder. O tribalismo é em si mesmo um tipo de nacionalismo. Por isso foi demonizado pelos dirigentes dos movimentos de libertação como reaccionário e pró-colonialista, logo contra os interesses dos povos e da sua libertação. Na realidade, o tribalismo representava os tradicionais valores dos povos de África e os movimentos de libertação eram, pelo contrário, importadores de modelos europeus, dos colonialistas, portanto.
De facto, o que a geração de dirigentes nacionalistas africanos fez com África e de África foi idêntico ao que os seus colegas das universidades europeias e os seus camaradas nos partidos e movimentos políticos da época fizeram ao erigirem-se em vanguardas dirigentes, em educadores das massas e do proletariado. São conhecidos os exemplos de estudantes da Sorbonne irem às fábricas de Paris ensinarem os operários a lutar contra o capitalismo.
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