1969 - Acreditar na Vitória

1969
O exército de Câmara Pina - mitos e realidades

Câmara Pina definiu e geriu o Exército da Guerra Colonial

Durante dez anos, foi Câmara Pina quem definiu e geriu o Exército. Ao passar para o cargo de director do IDN, em 1969, instituto que ele criara para si como instrumento de formação de elites para uma evolução gradual e muito controlada do regime, ele iria servir-se do seu novo posto para continuar a exercer a sua influência.

Luís Maria da Câmara Pina (1904-1980), oficial do Exército e licenciado em Matemática e Engenharia Militar, foi secretário de Sinel de Cordes no final da década de vinte, deputado salazarista em 1945-1946, vice-presidente da Câmara Corporativa em 1946-1950 e adido militar em Londres. Com a ascensão de Botelho Moniz a ministro da Defesa foi nomeado chefe do Estado-Maior do Exército em Setembro de 1958, funções que manteve até 1969, data em que passou à reserva. Influenciou a criação do Instituto de Altos Estudos Militares, introduzindo em Portugal as perspectivas de segurança interna da Escola Superior de Guerra do Brasil, de Colbery do Couto e Silva.

 

Câmara Pina, chefe do Estado-Maior do Exército, com Mário Silva, ministro do Exército, num dos primeiros embarques de tropas para Angola. [JE]

 

Câmara Pina: um militar intelectual

O general Câmara Pina é geralmente apontado como o exemplo do militar aristocrático, um anti-troupier, um militar que frequentava mais os corredores do poder político que os quartéis, que criou um grupo de seguidores, um pouco à sua imagem, no Corpo de Estado-Maior. O Corpo de Estado-Maior era, nos anos 60, um anacronismo militar. Em Portugal só existia no Exército e no Mundo só na Venezuela existia um corpo idêntico.

 

Corpo de Estado-Maior – o corpo!

Era a elite dirigente do Exército Português. Era dele que saía a quase totalidade dos oficiais generais, eram os oficiais do corpo que chefiavam os quartéis-generais na Metrópole e no Ultramar, que frequentavam cursos nas escolas estrangeiras, que eram adidos militares e desempenhavam funções nos gabinetes dos ministros. Eram eles os professores da Academia Militar onde se formavam os futuros oficiais do Exército, do Instituto de Altos Estudos Militares, onde se reproduziam os oficiais do Corpo de Estado-Maior e eram eles, obviamente, os directores dos cursos de promoção a oficial-general onde cooptavam os seus pares.

O Exército Português foi dirigido pelo Corpo de Estado-Maior até ao 25 de Abril de 1974 e durante dez anos cruciais, de 1958 a 1969, o corpo foi dominado por Câmara Pina.

 

Câmara Pina – responsável pelo Exército

Os hagiógrafos de Câmara Pina salientam as suas qualidades intelectuais, de matemático, de político brilhante, de homem de elevada cultura e finura de trato, mas antes de tudo Câmara Pina foi chefe do Estado-Maior do Exército, à época a segunda figura da hierarquia do ramo, depois do ministro do Exército.

 

Câmara Pina visita um dos novos quartéis do Exército. [JE]

 

O pós-guerra: fazer de conta que o Mundo não mudou

A política oficial de Salazar no pós-II Guerra Mundial foi a de, tanto quanto possível, fazer de conta que o Mundo não mudara. Esta foi também a política aplicada ao Exército por Câmara Pina, procurando que o conflito de blocos político-militares e o
movimento descolonizador, as duas grandes consequências da II Guerra Mundial, não causassem grande impacto no Exército.

 

Manter separados os corpos estranhos

A criação de unidades e estruturas afectas à NATO não alterou o conceito de exército de massas, do tipo ocupacional, que caracterizava o Exército Português na Metrópole. A divisão SHAPE, com sede em Tomar e campo de manobras em Santa Margarida, foi um corpo que os chefes militares quiseram que fosse estranho num Exército que devia continuar adormecido nos quartéis. Também o movimento descolonizador não levou à reorganização do Exército para actuar em África. O reflexo mais visível deste processo, que desfazia os antigos impérios coloniais, foi a organização de visitas de estudo de alguns oficiais do Corpo de Estado-Maior à Argélia, visitas organizadas por iniciativa do então subsecretário de Estado do Exército, Costa Gomes, que Câmara Pina aceitou sem entusiasmo. Aceitaria, mais tarde, enviar alguns jovens oficiais frequentar os cursos de Ranger aos Estados Unidos e ao Panamá – os oficiais do Corpo de Estado-Maior não tinham idade, nem estatuto, para estas actividades físicas! A criação do Centro de Instrução de Operações Especiais (CIOE) em Lamego e a organização de conferências sobre guerra de contra-subversão no Instituto de Altos Estudos, em Pedrouços, são elementos paradigmáticos do pensamento e da acção de Câmara Pina – os práticos eram enviados para bem longe (a escolha do local de instalação do CIOE fez-se entre Chaves e Lamego), dedicados aos seus “americanizados” exercícios, e os intelectuais bebiam a doutrina sentados em Lisboa.

 

Desfile de carros de combate em Santa Margarida. [JE]

 

Um Exército nas colónias para combater na Europa

A reorganização do Exército, que conduziu à criação de Regiões Militares em Angola e Moçambique e Comandos Territoriais nos outros territórios no final dos anos 50, traduz a ausência de sensibilidade política dos chefes do Exército Português, que foram incapazes de enquadrar o fenómeno da descolonização. Estas estruturas continuavam a ser, no fundo, reservas de unidades para actuarem na Europa, como foram as tropas coloniais argelinas e senegalesas para os franceses e os gurkas para os ingleses.

 

Um Exército territorial – ordem e soberania

A estrutura arquitectada pelo Estado-Maior de Câmara Pina é o reflexo das suas concepções do Mundo e da instituição militar. Para Câmara Pina, o Exército era, antes de mais, uma força de ocupação do terreno. O seu exército, metropolitano ou ultramarino, era um exército territorial, com unidades implantadas em superfície, para controlarem áreas e pontos importantes, para defenderem fronteiras e vias de comunicação. Era um exército para manter a ordem e a soberania.

 

Um Exército operacional – combater e vencer

No início das operações em Angola, durante a fase da reocupação do Norte, as circunstâncias obrigaram o Exército a concentrar-se nas operações, a combater para atingir objectivos e a conquistá-los. Mas, à medida que a situação estabilizou, o Exército instalou-se para ocupar o terreno. Surgiu a quadrícula, surgiram as zonas de acção, os sectores de Batalhão, as sedes de unidades; as principais tarefas das unidades passaram a ser as do aquartelamento e as da acção psicológica (APsic). Era a vitória do Exército instalado e defensivo proposto pelo Estado-Maior de Câmara Pina, contra o Exército móvel e combatente que muito poucos defenderam, nunca sendo ouvidos.

 

Um Exército que viveu e combateu em condições precárias. [AJMS]

 

 

 

 

 

 

Ocupação ou mobilidade?

O Exército de Câmara Pina era filho dos conceitos de Salazar. Acima de tudo devia ser barato e poupado. Com Salazar não existia a ideia de investimento, de gastar mais hoje para ganhar mais amanhã. Um Exército de mobilidade exigia investimentos em meios e em pessoal para o operar. Viaturas de vários tipos, helicópteros, técnicos preparados para operarem e manterem os sistemas de armas. Câmara Pina nunca o considerou, nem defendeu.

 

O Exército de Câmara Pina – barato e sem equipamento

O Exército de Câmara Pina era barato, com poucas viaturas de transporte (as primeiras de que dispôs eram as que equipavam as unidades NATO), com poucos blindados, poucas viaturas de Engenharia Militar. Resultaram daqui as dificuldades de progressão que se tornaram visíveis nas fotografias da época das unidades que progrediram pelos itinerários do Norte de Angola, ou que tentavam chegar a Nambuangongo – abatizes levantados à força de braço, pontes improvisadas, militares de peito descoberto em cima de jipes armados com uma metralhadora.

É um Exército que não foi organizado nem preparado para combater, que está equipado com a espingarda de repetição Mauser como arma individual, que não tem equipamentos de rádio, excepto e mais uma vez, os que equipavam as unidades NATO, um Exército que em 1961 não tem uma mochila, um equipamento individual de combate onde pendurar as cartucheiras e o cantil, que não tem um fato de combate!

O Exército de Câmara Pina era um Exército de soldados e quadros com baixa preparação, que recusaria ter helicópteros orgânicos, por receio do aumento dos custos e de não ter pessoal habilitado para os operar!

 

Sem avaliação do mérito

Dentro dos princípios do salazarismo, não existe avaliação objectiva do desempenho dos comandantes, nem das unidades, mas sim uma avaliação subjectiva do conceito em que determinado militar ou unidade é tida. Premeia-se, principalmente, a ausência de iniciativa e castiga-se o protagonismo ou o sentido crítico. O único prémio para os oficiais é a possibilidade de ingresso no Corpo de Estado-Maior. Para os sargentos são raras as promoções por distinção que, quando ocorrem, curiosamente, transformam um sargento combatente de Infantaria num alferes do Serviço Geral, em princípio destinado a tarefas administrativas!

 

O tenente-coronel Maçanita: um caso exemplar de avaliação e desconsideração

Um caso exemplar deste tipo de avaliação foi o do tenente-coronel Armando Maçanita, o comandante do Batalhão de Caçadores 96 que ocupou Nambuangongo durante a Operação Viriato. Depois de lhe ter sido atribuído o mais difícil e longo eixo de aproximação, depois de vários mortos e feridos, recusou que fosse uma outra unidade a recolher os louros da vitória. Seria aceitável que fosse punido pela recusa, ou condecorado pelo feito de armas, ou até punido e condecorado. O que aconteceu foi não ser punido nem condecorado e ser, mais tarde, substituído no comando! Uma típica decisão salazarista.

No outro batalhão envolvido na operação, que apesar das muitas baixas não alcançou o objectivo, o comandante foi condecorado e mais tarde promovido a general – era do Corpo de Estado-Maior!

 

O tenente-coronel Maçanita (à esquerda) durante a Operação Viriato para a reocupação de Nambuangongo. [AFF]

 

Um Exército classista – classes militares e habilitações literárias

Num Exército de conscrição, em que todos os jovens deviam cumprir o serviço militar, o regime salvaguardou tanto quanto pôde a separação das classes sociais. Foi, mais uma vez, a origem social a sobrepor-se ao mérito e às capacidades.

A primeira e mais importante condição para ser oficial ou sargento miliciano eram as habilitações literárias que, no regime, estavam associadas à classe social. Os licenciados, os que frequentavam a universidade e, por fim, os habilitados com o sétimo ano dos liceus eram, por princípio, destinados a oficiais; os habilitados com o 5º ano ou com os cursos comerciais e industriais eram destinados a sargentos; e os restantes a praças.

 

A formação dos comandantes de companhia e de batalhão

Há que reconhecer que este método de selecção de oficiais subalternos e de sargentos milicianos pelas pautas dos liceus ou das escolas comerciais não foi determinante no desempenho das unidades do Exército e que, ao longo da guerra, o Estado-Maior procurou, em certas circunstâncias, encontrar métodos para seleccionar os melhores para o desempenho das funções de oficiais milicianos, independentemente das habilitações literárias. 

O factor determinante para o mau desempenho operacional situou-se sobretudo nos escalões superiores, na forma como foram recrutados, instruídos, comandados e avaliados os comandantes de companhia e os comandantes de batalhão.

 

A instrução das unidades – um faz-de-conta

Como muitos outros sistemas, a instrução do Exército dispunha de uma organização teoricamente adequada e funcional, que permitiria, caso fosse bem executada, preparar os militares e as unidades para a guerra. A falência do sistema de instrução, que produziu militares e unidades cada vez pior preparados, deveu-se ao modo como foi aplicado, acrescido da incapacidade do Exército de Câmara Pina para avaliar e responsabilizar os seus dirigentes. Pode dizer-se que o principal culpado foi o sistema de mobilização.

 

Recorte do Diário de Notícias.

 

O sistema de mobilização – um carrossel permanente

Todos os quadros permanentes – oficiais e sargentos – estavam numa escala geral de mobilização. Isto fazia com que, desde o comandante de um centro de instrução ao mais simples instrutor, todos pudessem ser mobilizados em qualquer altura. Não havia, pois, qualquer meio de avaliar o seu desempenho, nem de o responsabilizar.

 

A instrução operacional

Os militares mobilizados recebiam instrução em unidades de mobilização e, em princípio, eram os futuros quadros das unidades que ministravam instrução. Isto é, na maior parte dos casos, ensinavam o que não sabiam, dado não existir no Exército nenhum sistema organizado de aproveitamento de militares com experiência de combate como instrutores, nem um Centro de Doutrina Táctica. Acresce que, com o decorrer da guerra, os oficiais superiores foram dando sinais de cansaço – alguns comandantes de batalhão já tinham cumprido comissões como comandantes de companhia, como oficiais de Estado-Maior de batalhão e seguiam para a sua terceira ou quarta comissão com mais de 50 anos de idade. Quanto aos comandantes de companhia, e esgotados os capitães dos quadros permanentes, eles eram agora tenentes milicianos preparados à pressa. A instrução era, pois, de muito má qualidade e disso se queixavam os generais comandantes-chefes dos teatros de operações.

 

A motivação

Neste Exército organizado por Câmara Pina não havia lugar ao estímulo por reconhecimento do mérito nem à punição por mau desempenho – todos os oficiais e sargentos dos quadros permanentes, os profissionais, eram promovidos por antiguidade, isto é, por escala. A única excepção para os oficiais era o ingresso no Corpo de Estado-Maior, instituição que premiava os seus membros com dois anos de antiguidade. Sendo assim, era indiferente a qualquer oficial das armas esforçar-se e correr riscos em combate pois em princípio seria sempre promovido a coronel. Este método estava, aliás, em linha com o conceito de Exército territorial que era o de Câmara Pina, um pacato Exército de ocupação.

 

Generais

Este sistema conduziu a uma situação que seria aberrante num Exército operacional – durante os anos da guerra apenas um general comandante-chefe de teatro de operações comandou um batalhão! Nenhum general comandante de Região Militar ou de Comando Territorial comandou um batalhão. Apenas cerca de 5% dos oficiais generais que ocuparam cargos de comando ou chefia em África durante a guerra comandaram uma unidade operacional antes de serem promovidos.

 

As Forças Especiais

Este Exército igualitário na mediocridade rejeitou quanto pôde a diferença e as Forças Especiais. Ficou célebre a frase de um general a decretar o fim das companhias de Caçadores Especiais, porque passavam a ser, a partir daquele momento, todas especiais!

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