1969 - Acreditar na Vitória

1969
Um regime sem saídas

Corrida espacial

No ano de 1969, a política internacional revelou as fragilidades das duas superpotências: os Estados Unidos venciam a União Soviética na corrida espacial, mas não podiam impor a sua vontade no Vietname, sólido aliado soviético. Por outro lado, os conflitos armados entre a URSS e a República Popular da China revelaram que o comunismo não era a panaceia nem o final de todas as contradições da sociedade burguesa.

 

Astronautas americanos na Lua. [DGARQ-TT-O Século]

 

A URSS lançou as naves Soyuz 4 e Soyuz 5 para a primeira manobra de acoplamento de duas naves tripuladas, no espaço. Mas os êxitos soviéticos empalideceram, não só pelo facto de os Estados Unidos terem enviado, em 25 de Fevereiro, a partir de Cabo Canaveral, a sonda Mariner 6 até Marte, com a missão de fotografar e transmitir informações, como pelo grande êxito que constituiu a chegada dos seus pilotos Neil Amstrong, Edwin Aldrin e Michael Collins à Lua. O impacto propagandístico conseguido pelos Estados Unidos com este feito, que constituiu um marco na história da humanidade, foi imenso e milhões de espectadores puderam vê-lo ao ser transmitido em directo pela televisão. A publicidade da aventura extraterrestre viu-se fortemente diminuída pela revelação das atrocidades das tropas dos Estados Unidos no Vietname na aldeia de Song My, onde foram executados a sangue frio mais de meia centena de civis desarmados, incluindo velhos, mulheres e crianças, o que provocou um aumento das manifestações contra a guerra.

 

Conflito sino-soviético

O conflito sino-soviético teve como pretexto uma disputa fronteiriça com origem no século XIX sobre os vales dos rios Ussuri e Amur. Esta reivindicação territorial correu paralela ao desentendimento político entre Kruschev e Mao, a partir de 1954. Entre 1960 e 1968, os dois países acusaram-se mutuamente em diversas ocasiões de violações da fronteira comum até que em 2 de Março estalou o conflito pela ilha de Chenbao, no rio Ussuri, o que provocou um elevado número de baixas dos dois lados. Finalmente em 24 de Maio o Governo de Pequim declarou que estava disposto a negociar o traçado definitivo da fronteira e propunha respeitar o statu quo para evitar novos confrontos.

 

O conflito no Vietname era a principal preocupação dos EUA. [CD/DN]

 

Em 17 de Junho, em vésperas da reunião da comissão sino-soviética para discutir os limites fronteiriços, efectuou-se em Moscovo a III Conferência Mundial dos Partidos Comunistas, no decurso da qual a direcção soviética, depois de ter acusado Pequim de ter uma política expansionista, tentou que fosse aprovada uma resolução condenatória. Esta intenção não chegou a concretizar-se devido à oposição dos partidos comunistas da Roménia e da Itália. Pelo contrário, o PCP, numa resolução do seu Comité Central, em Outubro, depois de enaltecer o papel dirigente da URSS e do PCUS, criticou a atitude antimarxista-leninista do PC da China, e a sua orientação nacionalista, chauvinista e as suas pretensões hegemónicas.

 

África

Em relação ao continente africano as novidades mais relevantes foram os golpes de Estado do Sudão, Líbia e Somália, os três com carácter esquerdista.

 

Senghor e a Guiné-Bissau

Em relação aos países vizinhos das colónias portuguesas foi-se verificando um certo acomodamento ao statu quo existente porque, para além da questão colonial, existia o diferendo da Guerra Fria e isso complicava mais as relações inter-africanas. A situação de tensão regional foi visível entre o Senegal e a Guiné-Conacri. Neste último país os soviéticos dispuseram desde 1969 de facilidades aeronavais, o que fez com que o presidente do Senegal, Leopold Senghor, se esforçasse por encontrar uma solução pacífica para a independência da Guiné-Bissau, assim o tendo explicitado, aproveitando a mudança da chefia política em Portugal. Senghor não queria que a Guiné-Bissau se emancipasse pelas armas porque isso reforçaria a aliança estratégica entre Sekou Touré e Cabral. Para além disso, Touré não escondia os seus desejos de anexar a colónia portuguesa, o que converteria essa hipotética nova Guiné numa pequena potência regional com capacidade de desestabilizar o Senegal, favorecendo a secessão de Casamança. Por isso, em Fevereiro, utilizando canais diplomáticos franceses, Senghor informou Portugal de um ousado plano de progressiva autonomia, através da qual a Guiné-Bissau poderia aceder à independência gradual ou participar numa futura comunidade luso-africana, na linha federalista que em 1958 De Gaulle quis implantar com vista a integrar o império na União Francesa (UF), com o que o Senegal concordava, mas Touré não. O presidente do Senegal já apresentara esta proposta às autoridades portuguesas via Brasil em 1965, mas sem qualquer êxito porque, em definitivo, os responsáveis do Estado Novo tinham a esperança de derrotar militarmente as guerrilhas.

Passados quase quatro anos, em todas as frentes de combate a progressão dos movimentos de libertação era assinalável, pelo que Senghor acreditou que era possível desenterrar o seu antigo projecto e tornar a apresentá-lo. Mas Caetano esperava pelas eleições de Outubro para reforçar a sua autoridade e conseguir maiores margens de autonomia política em relação à velha guarda salazarista, pelo que a proposta de Senghor em Fevereiro ficou em suspenso. Voltou a apresentá-la quando Caetano, com os mesmos métodos viciados de Salazar, ganhou as eleições. O presidente do Conselho, embora pareça paradoxal, acreditou que tinha ganho de forma limpa o sufrágio e que devia sentir-se apoiado para aplicar uma política, que sem ser integrista lhe permitisse alguma descentralização administrativa, razão por que foi pouco receptivo à proposta de Senghor, pois sempre pensou que acabaria conduzindo à independência. Face a esta frustração, a diplomacia senegalesa apresentou duas denúncias perante o Conselho de Segurança da ONU por violação da sua soberania, pois em 27 de Novembro e em 7 de Dezembro a Artilharia portuguesa estabelecida em Bigene abriu fogo reiterado sobre a aldeia senegalesa de Samine, causando um morto e oito feridos graves no primeiro dia e cinco mortos e um ferido no segundo, para além de destruições em edifícios oficiais e particulares. Por isso Portugal foi condenado no Conselho de Segurança numa resolução aprovada por 13 votos a favor e duas abstenções: a de Espanha e a dos Estados Unidos. 

 

Zâmbia

Outro país que estava na linha da frente contra Portugal era a Zâmbia, que também se viu obrigada a recorrer ao Conselho de Segurança em 3 de Julho não só por ter sofrido outra agressão armada na aldeia de Lote, no distrito de Katete, limítrofe de Moçambique, mas também porque as forças coloniais tinham saqueado e raptado pessoas suspeitas de colaborar com a guerrilha.

Apesar disso, a Zâmbia procurou aproximar-se de Portugal. Em Janeiro, Mark Chona, conselheiro do presidente, encontrou-se em Lisboa com Marcelo Caetano para conhecer as suas intenções políticas, a quem se ofereceu para mediar com as guerrilhas de Angola e de Moçambique, o que foi recusado por Caetano. Também Kaunda procurou canais de comunicação com a África do Sul com ofertas similares, mas também essa via se revelou inútil. A Zâmbia passou então a apoiar mais decididamente as oposições nacionalistas aos regimes brancos que, por sua vez, porfiaram em desestabilizar o regime de Kaunda que, ainda neste ano, teve graves problemas internos com sublevações e dissidências tanto dentro do seu próprio partido como no Governo. 

 

Portugal e o Congo

Maior tranquilidade revelaram as relações entre Portugal e a República Democrática do Congo. Contribuiu para isso a eliminação de Tchombé do cenário político congolês através da sua enigmática morte em 29 de Julho na Argélia, onde vivia em cativeiro nos últimos anos. A partir de então e com mediação americana, que considerava este país a chave para a estabilidade da região, onde existiam as maiores jazidas de minerais estratégicos, foi possível chegar, a meio do ano, a um acordo entre as autoridades portuguesas e Kinshasa para realizar uma operação conjunta nos dois lados da fronteira para desalojar a FNLA. A mudança da atitude congolesa ficou a dever-se ao facto de os bandos armados de Holden Roberto, mal enquadrados, cometerem atrocidades e arbitrariedades entre a população, causando um profundo mal-estar. A partir desse momento, Mobutu decidiu agrupar a FNLA na base de Kinkuzu, próximo da capital, afastando-os da fronteira angolana sem acabar com ela para se apresentar, perante os seus homólogos africanos, como um líder comprometido com a liberdade dos povos e poder intervir na hipotética descolonização de Angola. 

 

Encontro entre autoridades portuguesas e congolesas na fronteira. [AHM]
 

 

Caetano perante a África

Para além do Conselho de Segurança, diversos organismos da ONU tentaram pressionar o novo presidente do Conselho português, Marcelo Caetano, para que modificasse a sua política. Logo em Junho, a Comissão de Descolonização denunciou a guerra como um crime contra a humanidade e um perigo para a paz mundial. Também em 16 de Setembro o secretário-geral, U’Thant, referiu a sua decepção, e do resto dos membros da ONU, ao verificar que Caetano continuava pela senda traçada pelo seu predecessor e, cinco dias mais tarde, a Assembleia Geral aprovou três resoluções contra a política portuguesa. No final do ano foram aprovadas outras cinco moções que, directa ou indirectamente, punham em causa a ditadura portuguesa.

Outras iniciativas internacionais desafiaram o rumo político português. Em 29 de Janeiro na capital do Sudão realizou-se uma Conferência de Solidariedade com os Povos das Colónias Portuguesas e da África Austral e em 16 de Abril, no encerramento da conferência de presidentes e primeiros ministros da África Central e Oriental, realizada em Lusaca, os 14 Estados da zona aprovaram uma resolução pedindo um final negociado à dominação colonial e ao apartheid. Este manifesto de Lusaca foi adoptado pela OUA em 9 de Setembro e pela ONU em 21 do mesmo mês com o nome de Manifesto sobre a África Meridional.

 

Recepção de Marcelo Caetano pela população de Bissau. [DGARQ-TT-SNI]

 

Os aliados de Portugal

Apesar desta oposição, Portugal dispunha de poderosos aliados. De entre os mais efectivos devem destacar-se a África do Sul e a Rodésia, que redobraram a sua cooperação trilateral que ia para além da mera questão militar, procurando também a integração económica. Assim, em Janeiro, os governos de Lisboa e Pretória assinaram um acordo sobre o aproveitamento conjunto do rio Cunene (Angola). Neste rio Portugal tinha a barragem e a central hidroeléctrica de Matala (Huíla) mas que não era suficiente para o regular, nem para produzir energia racional, por causa dos caudais irregulares. Então, com financiamento sul-africano, foi construída a barragem de Gove (Huambo), que ao controlar o caudal permitia uma produção eléctrica estável e ter excedentes hídricos que se acumulariam na futura barragem de Calueque (Cunene), de onde sairia um canal de água que permitiria a construção no Norte da Namíbia da hidroeléctrica de Rucana, que ainda hoje é a principal fonte de produção energética desse país. À margem do desenvolvimento económico e regional, o projecto tinha um objectivo colonial, já que se pretendia fixar ali cerca de 500 000 colonos europeus, a maioria portugueses, tentando tornar viável um velho projecto que já tinha sido planeado em 1946 pela Junta Autónoma de Obras de Hidráulica Agrícola e previsto no Primeiro Plano de Fomento (1953-1958). A obra implicava a deportação dos angolanos que viviam nas proximidades do rio e a proibição da vida nómada no Sul do território, sendo estas populações realojadas em aldeamentos estratégicos. Com a repovoação branca e a marginalização dos autóctones pretendia-se criar uma barreira que impedisse a actuação dos movimentos de libertação, em especial do South-West African People Organization (SWAPO) bastante activo na zona.

 

Cahora Bassa

Idêntico objectivo estratégico se perseguia com a construção em Moçambique de Cahora Bassa, adjudicada em 4 de Setembro ao grupo multinacional Consórcio Hidroeléctrico do Zambeze (Zamco), formado por empresas alemãs, sul-africanas, francesas, suíças e portuguesas. Ao projecto juntaram-se igualmente capitais ingleses e americanos. Com a sua construção pretendia-se aumentar o número de colonos numa zona com escassa presença branca. A administração calculava que até um milhão de europeus se pudessem radicar no vale do Zambeze, atraídos pelas potencialidades agrícolas, de criação de animais e minerais da zona. Com Cahora Bassa chegariam também vantagens adicionais para Portugal: tranquilizaria os colonos e convenceria os meios internacionais sobre a sua inequívoca vontade de permanecer em África. Por outro lado, o grupo Zamco comprometeria os países construtores na defesa da obra e no apoio à política africana de Lisboa. Contudo, a realização da obra trouxe várias dificuldades. Especialmente as condições de financiamento provocaram um grave confronto no seio do gabinete de Caetano, pois Portugal devia ser avalista de todos os créditos e a contrapartida sul-africana era muito pouco generosa, apenas ficaria com a maior parte da energia que produzisse, mas enquanto fosse assegurada uma produção sem interrupções, devendo ser, caso contrário, indemnizados com compensações muito elevadas. Por essa razão, os ministros das Finanças, Dias Rosas, e o da Economia, Correia de Oliveira, opuseram-se a estas cláusulas porque pensavam que não era possível garantir que não haveria cortes no fornecimento. Para além disso, Portugal, para poder realizar as obras e evitar as sabotagens da FRELIMO, teve que realizar uma grande concentração de forças na zona do complexo que foram desviadas das áreas de guerra, o que reforçou a capacidade militar da guerrilha. 

 

Aspecto da construção da barragem de Cahora Bassa. [DGARQ-TT-SNI]

 

Eixo Lisboa-Salisbúria-Pretória

No plano operacional reforçou-se, de forma permanente, a colaboração do eixo Lisboa-Salisbúria-Pretória. Em Fevereiro, o ministro da Defesa, Sá Viana Rebelo, depois de realizar um périplo por Angola e Moçambique, visitou Pretória reunindo-se com as máximas autoridades militares e civis e, por sua vez, o ministro da Defesa, Pieter Botha, viajou para Lisboa no dia 21 de Março, onde foi condecorado, visitou a fábrica de material de guerra e encontrou-se com diversas personalidades do Governo e das Forças Armadas para acertar uma maior colaboração entre os dois países. Com esta base, reuniram-se, de 17 a 25 de Julho, em Lisboa, os máximos representantes dos serviços secretos dos três países.

 

Países ocidentais

Caetano recebeu a visita de Giscard d’Estaing, ministro da Economia de França (31 de Maio), a do ministro espanhol do Plano de Desenvolvimento, López Rodó (26 de Junho), e visitou oficialmente o Brasil (25 de Julho). Mas o que revela a mudança de paradigma da diplomacia portuguesa foram as duas viagens de Marcelo Caetano a Washington.

 

Marcelo Caetano com o presidente Nixon em Washington, durante o funeral do general Eisenhower. [DGARQ-TT-SNI]

 

A primeira com o motivo da tomada de posse do presidente Richard Nixon (20 de Janeiro) e a segunda para assistir às exéquias do ex-presidente Dwight Eisenhower (30 de Março). No decurso desta última viagem, foi recebido, em 2 de Abril, pelo presidente Nixon numa reunião de trabalho que excedia o hábito protocolar e revelava a inflexão da política africana da nova administração republicana. De facto, a chegada de Nixon e do seu secretário de Estado, Henry Kissinger, à Casa Branca representou uma nova reformulação das suas relações com a África do Sul e com a ditadura portuguesa porque era vital para Washington que a URSS não se instalasse no Corno Sul da África, pois, uma vez fechado o canal do Suez, a frota soviética passou a patrulhar o Índico. Nesta conjuntura os Estados Unidos só viam vantagens na manutenção do statu quo branco no Sul do continente, que ainda por cima lhes permitia o acesso aos recursos minerais sul-africanos e a preservação dos enormes investimentos que os seus cidadãos tinham nesse país. A política americana, como referiu o embaixador João Themido, era ambivalente pois dava apoio ao domínio branco na África Austral em privado, enquanto em público reclamava o direito de autodeterminação para apaziguar os países africanos e a comunidade afro-americana. Para além disso convencera-se de que a continuidade portuguesa em África era inquestionável pois, embora considerasse que o seu Exército não tinha capacidade para neutralizar a guerrilha, esta também não estava em condições de ganhar, e dada a vontade portuguesa, era preferível manter a aliança com este país, o que lhe permitia não só dispor da base das Lajes como também dispor de um polígono de rastreio de submarinos na ilha de Santa Maria (Açores), cuja autorização ocorreu em Junho. Este projecto contou com a participação dos Estados Unidos, Canadá, Grã-Bretanha, França, Alemanha, Itália e Holanda no âmbito da NATO. Também em 7 de Novembro o subsecretário americano para os Assuntos Africanos iniciou uma visita a Angola, a Moçambique e à África do Sul, e em 26 de Novembro os adidos militares das embaixadas dos Estados Unidos, da França, Alemanha, Grã-Bretanha e Brasil visitaram as frentes de guerra em Angola e Moçambique, o que significou um claro apoio à política do Executivo de Caetano no continente africano.

Mas nem todos os governos ocidentais apoiaram o colonialismo português. Os seus maiores opositores eram os países escandinavos, com a Suécia à cabeça.

 

Adidos Militares acreditados em Lisboa desembarcam para uma visita aos teatros de operações em África. [AHM]

 

Angola

Em Angola, numa altura em que os sequestros de aviões eram frequentes pelos efeitos publicitários imediatos, Juka Valentim, secretário do Comité Regional de Luanda (CRL) do MPLA, organizou uma acção deste tipo para demonstrar que as ideias emancipalistas não eram assunto exclusivo de combatentes exilados ou vivendo em áreas remotas, mas que também se combatia no interior. O avião sequestrado foi um Dakota que fazia a rota Ambrizete-Sazaire e que em 4 de Junho transportava 17 passageiros, três deles membros do próprio comando dirigido por Soares da Silva, que desviou o aparelho para Ponta Negra (República Popular do Congo). Como consequência de esta acção, a PIDE iniciou uma espectacular operação para destruir os núcleos que a tinham organizado, visto que tal acto requeria uma infra-estrutura razoável.

Assim, entre Outubro e Novembro, foram detidos cerca de 60 militantes, ficando o CRL desmantelado e afectando a organização do MPLA em várias cidades angolanas, assim como apoiantes do movimento residentes em Portugal. Contudo, a guerrilha penetrou no distrito do Bié durante o Verão e manteve a guerra presente nas províncias de Cuando-Cubango, Moxico, Lunda e Malange.

 

MPLA

Em Julho, uma delegação da Comissão Militar da OUA, acompanhada por Agostinho Neto e constituída por representantes da Argélia, RDC, Egipto e Zâmbia, visitou durante dez dias as zonas libertadas situadas no saliente do Cazombo. Mas o grande esforço do MPLA para alargar as suas linhas de penetração obrigou o movimento a um esforço para o qual não estava preparado. Por isso, e pela acção das forças militares portuguesas, o MPLA acabou por ficar isolado. Para além disso o lançamento de herbicidas destruiu as copas das árvores e as plantações de mandioca, provocando um período de muita fome. A vida passou a ser muito dura para os guerrilheiros e para a população que os apoiava. As dificuldades militares acabaram por fazer aflorar o conflito étnico latente causado pelas diferenças entre os quadros superiores da guerrilha, que eram do Norte, procedentes do exílio no Congo-Brazzaville ou da 2ª Região Militar de Cabinda, e a maioria dos combatentes anónimos que eram originários do Leste. Este mal-estar provocou, nos finais do ano, a primeira grande dissidência na Frente Leste, conhecida como Revolta Jibóia, sendo antecedente da Revolta do Leste, que rebentaria com mais estrondo a partir de Maio de 1972.

A Revolta Jibóia deriva do nome de guerra do seu fundador, Bernabé de Freitas Mukue, um comandante guerrilheiro de etnia mbundu que tinha sido designado responsável da 5ª Região Militar (Bié), onde havia pouco o MPLA se tinha implantado e onde a falta de armamento e de comida era muito grande. Jibóia marchou até à fronteira e veio juntar-se-lhe gente da sua etnia que combatia na 3ª Região Militar. Queria chegar à fronteira e apresentar as suas queixas a Agostinho Neto, mas o líder do MPLA encontrava-se em Brazzaville, pelo que foram recebidos por Chipenda a quem apresentaram as suas reivindicações. Chipenda comprometeu-se com os dissidentes a apresentar as suas reivindicações à direcção e também que não haveria represálias sobre os líderes do protesto.

 

Escola do MPLA. [AHM]

 

FNLA

A debilidade do MPLA coincidiu com a dos outros dois movimentos de libertação. A FNLA/GRAE, com excepção de uma emboscada com poderosos meios entre Quibala e o Toto (Uíge) em 17 de Janeiro, com 17 mortos, dois desaparecidos e oito feridos, não realizou grandes acções contra as tropas coloniais. Na segunda metade do ano limitou-se a transmitir noticiários através da Voz de Angola Livre, que desde Junho emitia desde Lubumbashi (RDC). 

 

Militares portugueses no Leste de Angola. [AFF]

 

UNITA

Em 1969 a UNITA ainda estava em fase organizativa, sendo afectada pelas mesmas condições que afectavam o MPLA no Leste: dureza da vida da guerrilha e poucos meios, o que também provocou deserções de importância. Uma delas foi a do major Tiago Sachilombo, que em Fevereiro, aliciado pela PIDE, desertou da zona dos bunda com 22 guerrilheiros armados e centena e meia de desarmados, entregando-se em Gago Coutinho (Moxico). Posteriormente foi empregue pela PIDE para aumentar as apresentações, participando, a meio do ano, na Operação Viragem, em que também intervieram forças sul-africanas e Flechas, tentando que forças da UNITA da região de Gago Coutinho e Cangamba se passassem para o lado português, juntamente com parte da sua direcção. Mas a guerrilha descobriu a traição e conseguiu neutralizá-la. Os serviços de informações portugueses que conheciam muito bem as dificuldades da UNITA contactaram com ela através da PIDE do Luso (Moxico) no final de 1968. Em qualquer caso, como demonstrou William Minster, os contactos existiam em Março de 1969, baseando-se em dois pontos: Portugal toleraria as tropas da UNITA e providenciaria armas e munições com as quais seria combatido o MPLA. As autoridades portuguesas acreditaram que Savimbi acabaria por se passar para o seu lado, mas ele nunca pensou nisso e esperava que Portugal descolonizasse e que o MPLA fosse triturado e, então, a questão se dirimisse entre a FNLA e a UNITA, com os seus apoios étnicos respectivos. Mas como mais de 40% dos ovimbundus apoiavam a UNITA em relação com os cerca de 30% de bacongos que se identificavam com a FNLA, acreditava que o futuro do país ficaria nas mãos da UNITA. De 24 a 30 de Agosto a UNITA realizou o seu II Congresso, no interior de Moxico, com a participação de uns 80 delegados que elegeram 31 membros do Comité Central e os 12 que integravam o Comité Executivo. Savimbi foi eleito presidente, N’zau Puna secretário-geral e o resto da direcção era integrada por, entre outros, Jofrey Kafundanga, como chefe do Estado-Maior, e José Samuel Chiwale, como comandante-em-chefe. Uma das resoluções que tomaram foi a de lutar contra as intenções do poder colonial para os colocar ao seu serviço, o que reflectia a intenção de procurar uma via própria para conseguir a independência.

 

Moçambique

Em relação a Moçambique, o ano de 1969 constituiu um grande desafio para a FRELIMO e para os seus equilíbrios internos. Lázaro Kavandame, o principal chefe maconde, foi afastado da direcção e ficou em Dar es Salam até nova ordem. Mas, um mês mais tarde, foi assassinado, na mesma cidade, o presidente da FRELIMO, Eduardo Mondlane, através de uma encomenda armadilhada e Kavandame, sentindo-se acusado de cumplicidade com o crime, fugiu da cidade e, em princípio de Abril, apresentou-se às autoridades portuguesas para salvar a sua vida, mas sem aceitar colaborar com elas. Contudo, a sua apresentação representou um inegável triunfo para a propaganda do regime que, para além de tudo, o utilizou como nuvem de fumo para afirmar que Portugal nada tinha a ver com o assassínio de Mondlane, visto as dissidências da guerrilha serem notórias. De qualquer forma está hoje provado que a responsabilidade material e intelectual do assassínio foi da PIDE de Moçambique, dirigida por António Vaz, sendo o autor do fabrico da bomba Casimiro Monteiro, que também tinha assassinado o general Humberto Delgado.

 

Tropas especiais em operações em Moçambique. [AJM]

 

FRELIMO

Sem Mondlane não houve outra solução senão estabelecer um comité executivo forte. De 11 a 21 de Abril reuniu-se o Comité Central, que acabou por designar um Conselho Presidencial integrado por Uria Simango, Samora Machel e Marcelino dos Santos, o que evidentemente não agradou ao primeiro, que acabou por ser expulso da organização em 10 de Outubro, quando acusou os seus companheiros de autoritarismo. A nova linha política pretendia intensificar a guerra popular prolongada, linha que veio a consolidar-se em Maio de 1970, quando o Comité Central designou Samora Machel como presidente e Marcelino dos Santos como vice-presidente, com o apoio da viúva de Mondlane.

 

Kaúlza de Arriaga

Em paralelo com a crise da FRELIMO, em 21 de Junho, Kaúlza de Arriaga foi nomeado comandante da Região Militar de Moçambique, que tinha uma teoria sobre a guerra subversiva sui generis. Para ele era prioritária a predominância militar sobre a política. Acreditava que, destruindo o quartel-general do inimigo, as suas tropas, sem coordenação superior, seriam facilmente derrotadas. Até Silva Cunha, ministro do Ultramar e, depois, da Defesa Nacional, reconheceu que a actuação militar de Kaúlza não só foi um desastre como acabou por reforçar a guerrilha, pois quando ele, com numerosos efectivos, tentou expulsá-la do Norte, a guerrilha acabou por se instalar em Tete. Sem esquecer que, quando as forças portuguesas abandonaram os santuários dos guerrilheiros no Niassa e em Cabo Delgado, estes voltaram a ocupá-los.

Os problemas de liderança aparentemente afectaram pouco a actividade operacional da FRELIMO, que continuou a atacar o Exército colonial. Mas o pior acontecimento para os portugueses não resultou de nenhum combate, mas de um acidente ocorrido no dia 21 de Junho, quando uma barcaça de transporte se afundou no rio Zambeze, afogando 101 militares, sendo a maior catástrofe de toda a guerra nos três teatros de operações.

 

Guiné

Uma das primeiras medidas do general Spínola foi a de colocar as áreas libertadas debaixo da sua responsabilidade, definindo-as como zonas de intervenção, ao mesmo tempo que a actividade militar ficou subordinada à manobra socio-política. Ainda em Junho, iniciou os preparativos para criar os Comandos africanos. A remodelação do dispositivo militar não foi fácil e, em 6 de Fevereiro, no decurso do abandono do aquartelamento de Madina do Boé, uma jangada com mais de cem homens da Companhia de Caçadores 1790 afundou-se no rio Corubal, por excesso de peso ou por má distribuição da carga, afogando-se mais de 50 militares e perdendo-se todo o material, incluindo viaturas. O PAIGC imediatamente ocupou a base, explorando o acontecimento, que falsamente assumiu como seu.

Spínola inicialmente centrou a guerra no chão manjaco, tentando manter a situação favorável no território fula, o que só foi possível quando as Forças Armadas conseguiram destruir a base do PAIGC ao sul de Piche. Num primeiro momento, não actuou no Sul, onde a guerrilha estava mais solidamente implantada, contendo a progressão no chão manjaco. Como o seu êxito foi grande, Spínola pensou que o PAIGC abandonaria as armas na região manjaca. Nesta altura, Spínola alcançou outro êxito espectacular, quando foi capturado o capitão cubano Pedro Rodríguez Peralta, em 3 de Novembro, sendo a primeira e única vez, nos treze anos da guerra, que foi detido um conselheiro militar de um país comunista, o que foi amplamente explorado pelo Governo português e pelos seus órgãos de propaganda, denunciando como comunistas os movimentos que lutavam nas colónias.

 

Retirada das tropas portuguesas do aquartelamento de Madina do Boé, no Leste da Guiné. [AJMS]

 

Spínola

Muito para além das acções militares, o novo comando militar fez um grande esforço na manobra contra-subversiva e as suas prioridades viravam-se para o chão manjaco, contemplando medidas sanitárias e outras de apoio às actividades económicas agrícolas e de pesca.

A manobra psicológica de Spínola passou também por libertar, em 3 de Agosto, aniversário de Pidgiguiti, cerca de uma centena de antigos guerrilheiros e seus colaboradores, entre outros Rafael Barbosa, presidente do Comité Central do PAIGC, que desde então se afastou de qualquer actividade militante. A PIDE, sobretudo entre os libertados de Chão Bom (Tarrafal), encontrou preciosos colaboradores, que se infiltraram no PAIGC, chegando até às mais altas estruturas do partido.

 

Spínola fala às tropas. [AHM]

 

PAIGC

Esta campanha de Spínola, intitulada Por uma Guiné Melhor e rotulada pelo PAIGC como de “sorrisos e lágrimas”, quebrou consideravelmente o moral dos guerrilheiros. Por isso, em meados de Outubro, a direcção do PAIGC visitou as unidades combatentes pedindo-lhes maior capacidade operacional e fé na vitória. Por seu lado, Amílcar Cabral convocou para Conacri, para o mês seguinte um seminário de quadros, durante o qual criticou a falta de capacidade militar e o conformismo de muitos comandantes perante a progressão da manobra psicológica do inimigo. Contudo, no final de Setembro, o PAIGC reforçou os seus bigrupos, repartindo por eles 26 cabo-verdianos que tinham sido treinados em Cuba e na URSS no manejo de armas pesadas.

Mas, apesar das suas dificuldades neste período, o PAIGC atacou várias zonas. No Norte, entre outras, as povoações e aquartelamentos de Ingoré, Guidaje, São Domingos; no Sul, Guileje, Tombali, Catió e Boloma, no Leste, grande parte da população de Piche fugiu para o Senegal e para outras zonas mais seguras e foi atacado o quartel de Quirafo. Para além disso, a guerrilha passou a empregar minas anticarro em diversos itinerários, sendo que a mais mortífera explodiu em Agosto nos arredores de Fulacunda, provocando cinco mortos e dez feridos.

 

Aspecto do presídio da ilha das Galinhas, onde se encontravam os presos do PAIGC. [DGARQ-TT-SNI]

 

Mudança política em Portugal

Na Metrópole, durante este período, a situação política convidava a um crescente optimismo, depois de décadas de asfixiante imobilismo. A ideia de mudança foi reforçada pela personalidade do novo primeiro-ministro. Marcelo Caetano aparecia em público com frequência, apanhava banhos de multidão, dirigia-se aos cidadãos pelos meios de comunicação social com certa regularidade e, a partir de Janeiro de 1969, realizou periódicas intervenções através da televisão chamadas “Conversas em família”, que ajudaram a projectar a sua liderança e dando ao regime uma aparência de modernidade e de actualização, concordante com a imagem tecnocrática e de eficácia que desejava oferecer.

Com vista a consolidar-se no poder e ampliar a sua base de apoio, Caetano aproveitou as eleições legislativas previstas para Outubro de 1969 para consultar a população acerca do problema crucial do regime: a questão colonial. Com vista ao acto eleitoral reestruturou a União Nacional, mais tarde baptizada como Acção Nacional Popular (ANP), renovando-a com gente jovem, substituindo dirigentes regionais e locais em muitas zonas do país, abrindo as suas listas a pessoas que até então não tinham participado da vida política e a outros que estavam mais perto da Oposição do que do Governo. Dois terços dos 150 candidatos da União Nacional apresentavam-se à Assembleia Nacional pela primeira vez. Alguns deles acabaram por constituir um grupo liberal denominado “terceira força”, distanciado tanto do Executivo como dos sectores democráticos. Para além disso, para dar mais credibilidade ao escrutínio foi modificada a lei eleitoral, aumentando o hipotético número de votantes, embora não se tenha permitido o voto nem a analfabetos nem a emigrantes. Consentiu-se, pela primeira vez, a existência pontual de organizações políticas de oposição e a fiscalização das votações. Medidas que, apesar de significarem um avanço, eram muito restritivas, na medida em que não se modificou substancialmente o censo eleitoral, que apenas incluía cerca de 18% de pessoas com direito a voto.

 

Caetano, uma expectativa falhada…

Com perspectiva histórica, pode dizer-se que as eleições de 1969 foram um fracasso para Caetano. Em primeiro lugar porque, apesar de muitos dos integrantes das listas da União Nacional serem gente nova, Caetano teve que colocar nelas alguns dos seus declarados inimigos que, 20 dias depois de inaugurada a legislatura, provocaram uma votação na Assembleia Nacional a favor da política ultramarina de Salazar. Também a Igreja manifestou, pela primeira vez, a sua independência a respeito do poder político e das opções partidárias. O resultado das eleições e a perpetuação da situação autoritária provocaram uma indubitável sensação de frustração. Em contrapartida, aumentou o radicalismo sobretudo nos sectores estudantis que, já em Abril, tinham desencadeado uma greve na Universidade de Coimbra, provocando a demissão da equipa directiva e do ministro da Educação. Estes sectores jovens, no seguimento da frustração eleitoral, entraram pela primeira vez nas lides políticas com propostas muito mais esquerdistas e decididamente revolucionárias.

 

Marcelo Caetano preside a uma sessão do Conselho Legislativo de Bissau. [DGARQ-TT-SNI]

 

Oposição

O regime, contudo, tentou dividir a Oposição mediante a aplicação de um grau desigual de repressão: Mário Soares e outros líderes da Acção Socialista Portuguesa (ASP) puderam exercer, quase sempre, uma actividade paralegal, ainda que sujeitos às arbitrariedades do regime. Publicaram um documento político, em Dezembro de 1968, assinado por quatrocentas e sessenta e sete pessoas, sem serem molestados pela polícia. Nesse documento, ao mesmo tempo que exigiam liberdades públicas, incluíram alguns elogios encobertos a Caetano, afirmando também que não se identificavam com o socialismo totalitário, com a clara intenção de se distanciarem dos comunistas. Esta atitude impossibilitou uma acção conjugada com a restante Oposição, de tal forma que nas eleições de 1969 socialistas e comunistas participaram no escrutínio divididos, os primeiros através da Comissão Eleitoral de Unidade Democrática (CEUD) e os segundos da Comissão Democrática Eleitoral (CDE). A desorientação estratégica do PCP foi grande desde a chegada de Caetano ao poder, produzindo-se no seu interior profundas discussões provocadas pelas diversas interpretações do “levantamento nacional” que este partido defendia para acabar com a ditadura, mas que não tornava claro; também a entrada das tropas do Pacto de Varsóvia em Praga em 1968, que a direcção apoiou, foi outro foco de discórdias; e pelo novo fenómeno do maoísmo. A tudo isto juntou-se a divergência causada pelos militantes que preferiram aproveitar a relativa tolerância trazida por Caetano, enquanto outros pensavam que devia redobrar-se a luta contra a ditadura, já que estaria agora mais debilitada, depois da desaparição de Salazar. Carlos Antunes disse-me: “Cunhal mediava esta discussão, dando-nos razão a nós [o sector mais radical] mas dizia-nos que havia camaradas no interior que tinham ilusões”. E assim apareceram publicamente dentro do PCP divergências sérias.

 

Sessão da CDE no teatro Vasco Santana, em Lisboa. [DGARQ-TT-O Século]

 

De entre os grupos marxistas-leninistas que surgiram através das eleições de 1969 destacou-se o Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado (MRPP), que nasceu de uma tripla componente operária, estudantil e militar. O sector estudantil surgiu depois de uma manifestação contra a Guerra do Vietname em Fevereiro de 1968 e deu lugar à Esquerda Democrática Estudantil (EDE). Contactou depois os círculos operários da zona norte de Lisboa (Vila Franca, Alverca, etc.) e desenvolveu-se com a incorporação de jovens trabalhadores politizados pela desilusão que se seguiu às eleições de 1969. Por último integrou também um núcleo de jovens militares que criaram a Resistência Popular Anticolonial (RPAC) e que, na sua maior parte, eram estudantes que cumpriam o serviço militar. Para além do MRPP apareceu também a Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos para ajudá-los e para mobilizar a opinião pública sobre a sua situação.

 

Plenário de estudantes na cidade universitária de Lisboa. [DGARQ-TT-O Século]

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