O conceito de manobra de Costa Gomes
A acção de Costa Gomes como comandante-chefe das Forças Armadas em Angola de 1970 a 1972 desenvolveu-se de acordo com a forma como ele ao longo da vida abordou os factos e os fenómenos sobre os quais teve de agir, em particular o fenómeno da guerra. É interessante verificar como a sua personalidade e a sua formação estiveram na base do seu conceito de manobra e das decisões que tomou para o concretizar no terreno.
Costa Gomes, que possuía uma formação matemática do mais elevado nível, serviu-se da metodologia das ciências exactas para a análise do fenómeno social da guerra. O conflito constituiu para ele um problema com múltiplas variáveis, mas um problema concreto, para o qual procurou encontrar soluções racional e circunstancialmente adequadas, sem preconceitos estabelecidos, que não fossem o seu saber, a sua experiência e a sua inteligência.
Num ambiente fortemente idealizado como é o militar, ao agir como um racionalista, colocando a razão antes da fé, ele constituiu uma excepção entre os generais portugueses da sua geração e encontrou-se naturalmente num campo oposto ao de Kaúlza de Arriaga, que dispunha de um modelo ideal preconcebido para impor a uma realidade que construíra à sua medida, e divergiu de Spínola, para quem a guerra era o acto supremo da sua história e da história dos homens, uma forma de emoção.
Costa Gomes entendia a sua função de comandante de forças empenhadas numa guerra como um trabalho que tinha de ser bem feito e não como uma missão histórica ou um destino a cumprir. Era um anti-herói, um anti-messias e talvez não seja correcto falar de uma “solução Costa Gomes”, mas sim de um “método Costa Gomes” de abordagem da realidade da guerra num dado contexto.
O Leste de Angola
A independência da Zâmbia, em 1964, foi o ponto de partida para o reconhecimento por parte das autoridades portuguesas de Angola da inevitável abertura da frente leste pelos movimentos de libertação. Contudo, no início de 1966, não tinham sido tomadas verdadeiras medidas de contenção na nova frente porque a situação no Norte não permitia libertar efectivos e porque existia a ideia de que a dependência da Zâmbia em relação ao corredor do Caminho-de-Ferro de Benguela limitaria o seu apoio.
Só a partir do início das acções militares dos movimentos de libertação nesta zona, cuja infiltração desde cedo tinha sido detectada, é que os aparelhos administrativos, policiais e militares reconheceram a urgência de acorrer à nova frente.
Todos os movimentos, MPLA, FNLA e UNITA (esta a partir da sua constituição), ocuparam posições no Leste de Angola, com infiltrações a partir da Zâmbia. Os objectivos estratégicos do MPLA e da FNLA passavam pelo acesso ao planalto central e pela possível ligação à frente norte, e os da UNITA pela consolidação da sua presença em todo o Leste, desde a Lunda ao Cuando-Cubango.
Contra-subversão – um conceito estratégico comum
As autoridades portuguesas compreenderam estes objectivos e tentaram, a partir de 1966, opor aos movimentos de libertação uma política coerente e coordenada de contra-subversão. Em primeiro lugar empenharam o dispositivo policial, especialmente a estrutura da PIDE, na recolha de informações e no estudo das possibilidades e das intenções dos movimentos. Em segundo lugar, os dispositivos militares foram alterados, levando ao aperto da malha de quadrícula em todo o Leste e à constituição de um único comando, que assumiria, mais tarde, a total responsabilidade da zona.
A abertura da segunda frente em Angola revela a consciência que as autoridades portuguesas já tinham da necessidade de aplicação de uma doutrina global, coordenada e assumida por todos os aparelhos da administração – civil, policial e militar. Este conceito estratégico de contra-subversão foi especialmente desenvolvido em Angola, a partir de 1967, com a constituição de uma “orgânica de contra-subversão”, que veio a definir, coordenar, orientar e mesmo intervir na execução de todas as acções políticas, administrativas e militares levadas a efeito em todo o território angolano. Esta estrutura, estendida a todos os escalões, não teve paralelo em nenhum outro teatro de operações.
A organização de contra-subversão constituída em Angola a partir de 1967 incluía um Conselho Geral de Contra-Subversão, que reunia uma vez por mês e integrava as mais altas autoridades civis e militares, Conselhos Distritais de Contra-Subversão, que reuniam uma vez por semana, e Comissões Locais de Contra-Suversão, que se consideravam em reunião permanente. Em todos estes órgãos participavam as autoridades máximas do respectivo nível, que tinham a missão de definir as prioridades e os procedimentos a adoptar, assegurando a coordenação da sua execução nas diversas estruturas, como decisões compulsórias para todos os serviços. Esta estrutura vertical era completada com órgãos laterais de coordenação, orientação e inspecção.
Um programa de contra-subversão
Um dos acontecimentos que viria a ter influência na atitude das autoridades portuguesas foi a realização, em Luanda, em Março de 1969, de um Simpósio de Contra-Subversão, cujas conclusões determinaram uma inflexão doutrinária, em campos tão importantes como a estrutura da própria contra-subversão, a definição de um “plano geral de contra-subversão”, o “reagrupamento e controle das populações”, a “promoção social e o reordenamento rural”, a “defesa civil, incluindo autodefesas e milícias das regedorias”, e a “acção psicológica e informação pública”.
Este programa, assumido pelo Governo de Lisboa, delineava as traves mestras da estratégia a seguir na jóia da coroa das colónias portuguesas e seria de particular utilidade na sua zona mais rica em matérias-primas, com excepção de Cabinda. Faltava apenas colocar no comando das Forças Armadas em Angola alguém que soubesse interpretar, ao mais alto nível, os princípios doutrinários estabelecidos para a contra-subversão, e fosse, ao mesmo tempo, capaz de fazer executar, no terreno, esses princípios. O escolhido, fortuita ou intencionalmente, foi Costa Gomes.
Costa Gomes em Angola
Costa Gomes chegou a Angola em Maio de 1970 quando os três movimentos já desenvolviam acções em larga escala no Leste, embora o esforço militar português ainda estivesse orientado para o Norte, onde a guerra havia começado. Recebeu contudo um sistema coordenador das acções de contra-subversão, que integrava as Forças Armadas, as polícias e a administração civil, já em fase adiantada de implantação.
A primeira acção de Costa Gomes foi reorientar decididamente o esforço para o Leste, que passou a ser o cenário principal da sua acção em detrimento das florestas dos Dembos que caracterizaram a actividade anterior. Para isso remodelou por completo o seu quartel-general, o qual passou a comandar não só os três ramos das Forças Armadas, Exército, Marinha e Força Aérea, mas também todas as outras forças que tivessem acção militar, fossem polícias rurais, forças auxiliares das milícias, Flechas da DGS, ou antigos gendarmes catangueses, os Fiéis.
Costa Gomes concentrou sob um comando único todos os meios disponíveis, independentemente da sua origem, e actuou com eles de modo a preservar da acção adversária o coração de Angola, o planalto central, que era muito mais vulnerável a acções vindas de leste do que vindas de norte. Sendo Costa Gomes comandante-chefe das Forças Armadas e existindo um governador-geral como autoridade máxima no território, para fazer passar junto da autoridade civil a ideia que tudo se jogava no planalto central ele teve o apoio da DGS local, que de há muito fazia a mesma análise da situação. Esta nova prioridade não podia no entanto ser efectivada sem que fosse garantida a segurança no Norte, na zona do café, nem à custa da segurança de Luanda, nem ainda prejudicar o desenvolvimento económico. Por isso, Costa Gomes continuará a assegurar a capacidade de intervenção no Norte, através, nomeadamente, da utilização de forças especiais, muitas vezes Pára-quedistas em missões de intercepção e de interdição de fronteiras através da Unidade Táctica de Intercepção com sede no Toto.
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