Polónia
Na ordem internacional, a Polónia, um dos satélites soviéticos, foi, em 1971, o país mais instável. O Governo, dirigido pelo Partido Operário Unificado Polaco (POUP), em 12 de Dezembro de 1970, depois de um período de más colheitas, decidiu aumentar os preços dos produtos de primeira necessidade em cerca de 25%, em média, ao mesmo tempo que congelou os salários. Estas medidas fizeram disparar a contestação operária, que se iniciou em 16 de Dezembro nos estaleiros de Gdansk. Os manifestantes exigiram a reposição dos preços, a democratização dos sindicatos e a liberalização política. Causaram também numerosos estragos em sedes governamentais, em edifícios públicos e em casas comerciais. A intervenção das forças de segurança, segundo números oficiais, provocou cinco mortos e mais de 30 feridos. O protesto estendeu-se de Gdansk a outros lugares, especialmente à cidade de Gdynia, onde a repressão policial provocou, também segundo números governamentais, 48 mortos e 1200 feridos, embora a Oposição tivesse considerado que o número real de vítimas deveria ser multiplicado por quatro. O POUP, para acalmar a agitação, destituiu o seu secretário-geral, Wladyslaw Gomulka, e substituiu-o por Edward Gierek, mas ainda durante Janeiro e Fevereiro de 1971 os trabalhadores de Gdansk, Lodz y Szczecin continuaram com a contestação conseguindo que, finalmente, fossem aumentados os salários e fossem destituídos diversos funcionários do partido e do Estado que eram especialmente impopulares. Gierek mudou a política económica potenciando o consumo e assim gradualmente conseguiu acalmar os protestos. Mas ao estabelecer-se uma política expansiva, sem bases estruturalmente sólidas, nos anos posteriores ocorreu um aumento constante das importações, o que fez disparar a dívida externa, tornando inviável o modelo comunista.
China
O diferendo sino-soviético fez com que Pequim e Washington se aproximassem. A primeira manifestação nesse sentido ocorreu em 10 de Abril com a chegada à capital chinesa de uma equipa de jogadores de pingue-pongue norte-americana acompanhada por um grupo de jornalistas. Este encontro desportivo preparou a visita secreta que em 9 de Julho realizou à China o secretário de Estado norte-americano, Henry Kissinger. Durante a sua estadia encontrou-se com o primeiro-ministro chinês, Zhou En Lai, o que propiciou que, em 25 de Outubro, a República Popular da China fosse reconhecida pela Assembleia Geral da ONU como representante da totalidade do povo chinês. Este facto levou à expulsão de Taiwan da ONU, passando a República Popular a ser o quinto membro permanente do Conselho de Segurança.
Vietname
Ao mesmo tempo que se dava esta aproximação com Pequim, os Estados Unidos tentavam cortar amarras com o Vietname, não sem antes alargarem o conflito aos países vizinhos, tentando debilitar o Vietcongue e os seus aliados do Norte nas vésperas das negociações. Assim, em 8 de Fevereiro, o Exército do Vietname do Sul, sob a direcção dos Estados Unidos, invadiu o Laos com o objectivo de neutralizar as bases que os comunistas vietnamitas aí possuíam. A incursão terminou em 9 de Abril mas, longe de favorecer os interesses de Washington, reforçou a guerrilha pró-comunista do Pathet Lao e o sentimento antiocidental dos seus habitantes, que desde 1964 eram sistematicamente bombardeados pelas forças americanas. Também em 2 de Junho foi bombardeado o Cambodja com inusitada violência e o Pentágono justificou o acto aludindo à necessidade de destruir as forças norte-vietnamitas que, a partir do Cambodja, tentavam invadir o Vietname do Sul. Perante este incremento da violência, a contestação à guerra nos Estados Unidos era cada vez maior. Nesse sentido, a Oposição democrata, que não queria prosseguir a guerra, conseguiu, em 31 de Março, que o Congresso aprovasse a retirada das tropas ao longo de 1972, tal como pedia a opinião pública. De facto, em 23 de Abril, as organizações pacifistas conseguiram mobilizar para Washington cerca de 500 000 pessoas a favor da paz e da retirada das tropas. No decurso desta manifestação, os veteranos devolveram as suas medalhas ao Capitólio em sinal de protesto. Estas demonstrações de impopularidade do conflito contagiaram os aliados dos Estados Unidos, fazendo com que, em 18 de Agosto, a Austrália e a Nova Zelândia retirassem os seus efectivos. Tornava-se mais patente o isolamento de Washington.
Bangladesh
Outro foco de tensão asiático foi o Bangladesh. Este território, denominado Paquistão Oriental, tinha constituído, com o Paquistão Ocidental, um único Estado, embora separados por cerca de 2000 km, onde se tinha refugiado a maior parte dos muçulmanos que povoavam a antiga colónia britânica, depois da ruptura da Península Indostânica, quando da independência em 1947. Mas o Paquistão Oriental, povoado por bengalis, ficou sob o domínio do Paquistão Ocidental que exercia o poder através de uma minoria estranha que, para além disso, se comportava com a população local com superioridade, considerando-os muçulmanos impuros por serem descendentes de hindus convertidos ao Islão. As divergências acabaram por estalar quando o tufão Bhola, o mais destruidor de que havia notícia, provocou, em 12 de Novembro de 1970, meio milhão de mortos e mais de 3 000 000 de prejudicados. Perante a catástrofe, o Paquistão Ocidental não reagiu, ao contrário da Índia, que se apressou a ajudar os seus vizinhos com o objectivo de provocar a sua secessão e debilitar o seu histórico inimigo. Nas eleições legislativas de Dezembro, ganhou o partido bengali da Liga de Awami, dirigido por Mujibur Rahman, que obteve 160 dos 162 lugares que correspondiam ao Paquistão Oriental. As profundas divergências entre os representantes do Paquistão Oriental e Ocidental impediram a constituição da Assembleia Nacional que devia reunir-se em 3 de Março em Islamabad. O presidente Yahiya Khan deferiu-a indefinidamente, pelo que na parte oriental se generalizou a desobediência civil. Foi então que o presidente do Paquistão mandou intervir a força, o que provocou um tremendo massacre de milhares de civis em 25 de Março. Ao mesmo tempo, o líder da Liga de Awami, que tinha seguido para Islamabad para a constituição do Parlamento, foi detido. Então, na parte Oriental, iniciou-se a luta pela independência com o apoio do Governo de Nova Deli. O conflito provocou a fuga em massa da população civil das zonas de combates, que se exilou na Índia. No início de Agosto, o Governo deste país informou que acolhia mais de oito milhões de refugiados. Perante a gravidade da situação e a falta de uma solução política, o Exército hindu entrou no conflito em Novembro provocando uma guerra entre os dois Estados. A Índia reconheceu, em 6 de Dezembro, a independência do Bangladesh e dez dias mais tarde, em Dacca, as tropas paquistanesas capitularam e evacuaram o país. O resultado do conflito apontava para a designação, como chefe de Estado, do que Rahman, que foi libertado pelo Paquistão em 22 de Dezembro. A derrota paquistanesa também implicou a demissão de Yahiya Khan em 20 desse mês e a sua substituição por Zulfikar Ali Bhutto. O novo presidente iniciou um titubeante caminho democrático.
Magrebe
No Magrebe, Houari Boumedian reforçou os laços da Argélia com o bloco socialista, ampliou as nacionalizações dos oleodutos e das reservas de gás natural e elevou para 51% a participação do Estado nas companhias petrolíferas francesas. Também lançou um programa de industrialização rápida baseado nas exportações de petróleo e gás, o que permitiu um desenvolvimento económico extraordinário e facilitou a aceitação das suas teorias libertadoras entre os movimentos nacionalistas africanos, a quem apoiou economicamente. Pelo seu lado, em 17 de Abril, na Conferência de Bengasi, o Egipto, a Líbia e a Síria constituíram a Federação dos Estados Árabes Unida, com um hino, uma bandeira e uma capital comum, o Cairo. Era o culminar dum velho projecto pan-árabe desenhado por Gamal Nasser. A federação foi aprovada, simultaneamente, em referendo nos três países em 11 de Setembro, sendo o Executivo constituído por um Conselho Presidencial dirigido por Anwar al-Sadat. Contudo, esta Federação só existiu no papel. A guerra de 1973 contra Israel acabou com um projecto que apenas estava esboçado.
África
Na África sub-sariana continuou a instabilidade política. Assim, nos Camarões, em 6 de Janeiro, o Governo acusou de alta traição cinco destacados membros da Oposição por estarem a preparar um complot, tendo sido condenados à pena capital. Entre os detidos encontrava-se o bispo católico Albert Ndogmo, razão que levou o Vaticano a apresentar imediatamente uma petição de clemência, sendo a sentença comutada. No Uganda, em 25 de Janeiro, estando o presidente Milton Obote, no poder desde 1966, fora do país a participar em Singapura na Conferência da Commonwealth, foi derrubado pelo chefe do Exército, o general Idi Amin Dada, que encabeçava uma ampla conspiração militar. O novo homem-forte do país seria proclamado presidente em 20 de Fevereiro. Também no Sudão o presidente Yafar al-Numeiry foi derrubado, em 19 de Julho, por um golpe de Estado realizado por oficiais intermédios de ideologia comunista mas, três dias depois, as forças leais ao presidente recuperaram o poder, desencadearam uma onda de detenções e executaram os 14 principais cabecilhas do pustch. Outra intentona militar, neste caso fracassada, teve lugar no Chade. O Governo liderado por François Tombalbaye acusou Muamar al-Gadafi de ter financiado o levantamento militar, pelo que rompeu relações diplomáticas com a Líbia. Mas nem todos os processos políticos do continente foram traumáticos, pois na Libéria, em 23 de Julho, depois da morte em Londres por doença do presidente Wiliam V.S. Tubman sucedeu-lhe com normalidade institucional o seu vice-presidente Wiliam Tolbert.
Congo
Entre os países vizinhos dos territórios portugueses deve destacar-se a decisão do presidente Mobutu Sese Seko de reforçar a africanização nominal do país, ao substituir a sua antiga denominação de República do Congo pela de República do Zaire. Era um gesto para promover o país perante os seus pares da OUA e também para esconder os gravíssimos problemas sociais, a elevada corrupção que abrangia todos os escalões do Estado, a começar pelo próprio Mobutu, e a desastrosa situação económica baseada, quase exclusivamente, na exportação do cobre. A debilidade de Mobutu permitiu que se estabelecessem relações diplomáticas directas entre Kinshasa e Lisboa através da embaixada de Espanha na capital zairense, onde em Setembro passou a estar acreditado o diplomata português António Monteiro, como encarregado de Negócios. Também se estabeleceu um contacto directo entre as mais altas autoridades angolanas e a cúpula do poder zairense, o que permitiu a Portugal estar ao corrente tanto do que sucedia no gigante vizinho como de antecipar a evolução dos acontecimentos. As relações Portugal-Zaire permitiram também que este último país aumentasse o seu abastecimento pois abriu-se ao comércio com Angola e a África do Sul e, em troca, Portugal teve um controlo indirecto, através de Mobutu, sobre a situação militar no Norte de Angola.
Malawi e outros países
O Malawi, outro aliado incondicional de Portugal, padecia de uma má situação económica e social que se agravou com o crescente autoritarismo do seu dirigente Hastings Banda, que em Julho se proclamou presidente vitalício. O apoio para a sua estabilidade vinha dos regimes colonialistas e racistas vizinhos, com os quais mantinha uma relação pública, contrariando as directrizes da OUA. Isto ficou claro em 27 de Setembro quando Banda visitou Moçambique para presidir a inauguração oficial do último troço do Caminho-de-Ferro de Nacala, que permitia a ligação com o Malawi. O presidente foi recebido pelo governador-geral Arantes e Oliveira com honras de chefe de Estado. Portugal também manteve excelentes relações com o presidente da Costa do Marfim, Houphouet Boigny, que chegou a propor em Abril a realização de uma conferência de países africanos para estabelecer pontes de diálogo com Portugal e a África do Sul, o que foi considerado como descabido pela grande maioria dos dirigentes africanos. Também Lisboa e o presidente Philibert Tsiranana, de Madagáscar, mantiveram uma boa sintonia até ao ponto de este negociar no primeiro semestre do ano a criação de estações de serviço para petroleiros no canal de Moçambique.
Guiné-Conacri e Senegal
Onde maiores dificuldades teve Portugal foi com os vizinhos da Guiné-Bissau e, especialmente, com a República da Guiné-Conacri, já que depois da Operação Mar Verde o regime de Touré endureceu as suas posições e aumentou a repressão interna. Neste sentido foi significativo que a Assembleia Nacional, constituída em “tribunal revolucionário”, condenasse à pena de morte 92 processados dos quais 58 foram enforcados nos dias posteriores e a outros 66 foram impostas longas penas de cárcere, entre eles o arcebispo de Conacri, monsenhor Chidimbo. Esta crescente radicalização de Touré fez aumentar as apreensões do Governo moderado do Senegal que tentou desbloquear a situação da descolonização da Guiné através de uma entrevista entre o seu ministro dos Negócios Estrangeiros e o de Portugal, que acabou em nada. Perante o imobilismo de Caetano, e para pressionar Portugal, o Senegal denunciou a situação perante o Conselho de Segurança da ONU que, em 15 de Maio, aprovou uma resolução condenando os ataques das forças portuguesas à soberania e integridade territorial deste país, exigindo o fim da violação do seu território e da colocação no seu território de minas anticarro e antipessoal. O conselho decidiu também enviar à fronteira entre a Guiné e o Senegal uma missão especial para analisar os factos. A comissão apresentou um relatório no dia 3 de Agosto que serviu para que fossem ratificadas as anteriores resoluções de condenação pelos actos de violência do poder colonial tanto na Guiné-Bissau como nas populações e aldeias do Senegal. Para além disso a resolução exortava o Governo português a respeitar a integridade territorial do Senegal e da Guiné-Conacri. Nesta sessão, o representante da Guiné-Conacri apresentou também um protesto contra Portugal, o que provocou o envio de outra comissão de investigação a este país, que no seu relatório, discutido pelo Conselho de Segurança em 30 de Novembro, assinalava que a Guiné-Conacri vivia com a permanente preocupação de uma nova agressão portuguesa, como a realizada em Novembro de 1970, e que essa crise e a perturbação regional se deviam à não concessão da independência à Guiné-Bissau.
Zâmbia
Neste ano também pioraram as relações de Portugal com a Zâmbia e com a Tanzânia. Kaunda, líder da Zâmbia, quis pressionar Portugal, a Rodésia e a África do Sul, deixando de controlar os movimentos de libertação com sede no seu país. Em Maio, os serviços de informação portugueses confirmaram que efectivos da FRELIMO estavam a ser treinados por forças regulares zambianas. Foi essa a razão que levou Portugal a, desde finais de Fevereiro, estabelecer um bloqueio económico que causou grande apreensão a Kaunda, que solicitou ajuda da comunidade internacional para que multiplicasse as pressões sobre o Governo português, que acabou por levantar o bloqueio, depois de uma visita confidencial a Lisboa de Mark Chona, enviado especial do presidente da Zâmbia. De qualquer forma o embargo não tinha sido total, pois o Caminho-de-Ferro de Benguela continuou a funcionar. A Zâmbia também denunciou perante o Conselho de Segurança a República da África do Sul por violação do seu espaço aéreo e terrestre especialmente na faixa de Caprivi, na fronteira entre este país e a Namíbia e por onde a guerrilha da SWAPO transitava. Uma resolução de 12 de Outubro condenou a agressão sul-africana e oito dias mais tarde, através de outra resolução, condenou a África do Sul a evacuar as suas tropas da Namíbia e a colocar esse território sob jurisdição da ONU. De facto, em Dezembro desse ano os ovambos da Namíbia declararam-se em greve e o ma-lestar contagiou os membros dessa etnia de Angola e também os cuanhamas. Estes movimentos tentavam impedir a penetração branca nas suas áreas tradicionais, sendo também influenciados pelo MPLA e pela SWAPO, que actuaram coordenadamente para impedir a realização do plano do Cunene.
Tanzânia
Em relação à Tanzânia, a PIDE/DGS realizou diversas acções contra o regime de Julius Nyerere. Na última, em Dezembro, a Força Aérea lançou no Sul do país milhares de panfletos que criticavam Nyerere e exaltavam Óscar Kambona, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros tanzaniano destituído no ano anterior por Nyerere, tendo conseguido fugir do país com a ajuda de Jorge Jardim e sendo desde então subsidiado pela PIDE/DGS.
Portugal-África do Sul-Rodésia
As relações entre Portugal, a África do Sul e a Rodésia passaram por uma coordenação mais efectiva porque também as guerrilhas da Namíbia, do Zimbabwe e da África do Sul passaram a actuar com maior intensidade. Por isso houve, em 14 de Fevereiro, uma reunião em Salisbúria da BOSS sul-africana, representada pelo seu responsável, o general Hendrik van der Bergh, da CIO rodesiana, encabeçada por Ken Flower, e da PIDE/DGS, representada pelo seu director-geral, o major Silva Pais. A preocupação dos governos racistas centrava-se na degradação militar em Moçambique, que permitia a passagem da guerrilha até à Rodésia e África do Sul. Do lado de Angola a situação militar estava mais controlada, embora esporadicamente a SWAPO, nas suas incursões até à Namíbia, também utilizasse o seu território. Os chefes dos três serviços secretos concordaram na criação de um comité conjunto para coordenar as informações. Também entre 30 de Março e 1 de Abril se encontraram em Pretória as respectivas cúpulas militares acordando desenvolver uma força estratégica de intervenção, realizar campanhas conjuntas de acção psicológica e criar uma rede de agentes que recolhesse de forma eficiente a informação para que pudesse ser analisada por todos. O principal problema com que se confrontaram foi a actuação do general Kaúlza de Arriaga, que fazia uma guerra “à americana” com grandes operações que eram detectadas pela guerrilha antes da sua execução, pela grande concentração de efectivos que requeriam. Para além disso, a sua política de aldeamentos generalizados fazia-se descuidando a acção psicológica para atrair as populações, o que as levava a fugir e a refugiar-se no Malawi e na Rodésia, causando viva preocupação aos governos. Para conter estas críticas, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Rui Patrício, em 24 de Junho, visitou a África do Sul, Angola e Moçambique. Mas o mal-estar entre os aliados de Portugal continuou. De facto, em 5 de Setembro, o director da CIO encontrou-se em Lisboa com Marcelo Caetano, com o CEMGFA, general Venâncio Deslandes, e com o director da PIDE/DGS, Silva Pais, a quem transmitiu a preocupação do seu Governo por aquilo que considerava uma péssima condução da guerra por parte do general Kaúlza. A intervenção de efectivos rodesianos em acções de guerra em Moçambique generalizou-se neste período e a imprensa do país vizinho criticou com veemência a pouca eficácia do comando português, entre outras razões porque não concedia autorização para as forças rodesianas actuarem por sua conta, nem em Angola nem em Moçambique. Por causa disso, em algumas ocasiões tropas sul-africanas, rodesianas e portuguesas actuaram descoordenadamente numa mesma zona, como sucedeu em Mucumbura (Tete) em 3 de Setembro, quando os rodesianos atacaram uma coluna da FRELIMO numa área em que já se encontrava uma companhia de Comandos portugueses que se viu inesperadamente no meio de um tiroteio.
ONU
Portugal continuou a enfrentar a maior parte da sociedade internacional e neste período cresceu o seu isolamento. Em Fevereiro o PAIGC foi convidado para a conferência ministerial da Comissão Económica e Social da ONU reunida em Tunes e em Dezembro a ONU convidou também, como observadores, os representantes de Angola e de Moçambique. Também a UNESCO decidiu apoiar os movimentos de libertação, o que levou o Governo de Lisboa, em Maio, a retirar-se desse organismo. Pela sua parte, em 6 de Dezembro, a Assembleia Geral da ONU, que tinha declarado 1971 como o ano internacional contra o racismo e a discriminação racial, condenou o Governo português por persistir na sua política colonialista e por continuar a guerra contra os povos dos territórios sob o seu domínio, destacando a necessidade da concessão de autodeterminação e independência a Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Quatro dias depois foi aprovado outro texto minucioso e claro contra o Governo de Lisboa denunciando: a utilização da guerra química; as mudanças constitucionais realizadas esse ano por Portugal, já que apenas serviam para manter o seu domínio; os bombardeamentos sistemáticos e indiscriminados; o eixo Pretória-Salisbúria-Lisboa por querer manter a hegemonia branca na África Austral; o tratamento que Portugal dava aos prisioneiros de guerra, em desacordo com a Convenção de Genebra; o auxílio militar dado pela NATO e outros aliados, recomendando a sua paragem; os projectos do Cunene e Cahora Bassa por serem nocivos para as populações autóctones; e, finalmente, enaltecia a atitude do Comité Especial da ONU encarregado da aplicação do direito de independência por se comprometer a visitar as zonas libertadas de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Entre os dias 10 e 20 de Dezembro, a ONU ainda condenou cinco vezes mais o Executivo de Caetano. A primeira por apoiar a Rodésia; a segunda por não reconhecer a condição colonial dos territórios sob a sua administração; a terceira pela construção de Cahora Bassa e Cunene; a quarta por não conceder a independência às colónias; e, a quinta, pedindo apoio para a formação de cidadãos da África meridional submetidos ao colonialismo e ao racismo.
OUA
Outros organismos internacionais manifestavam-se no mesmo sentido. Assim, a OUA colaborou com os movimentos de libertação e em Setembro uma delegação pan-africana visitou vários países da NATO para que deixassem de apoiar o colonialismo português. Outras ajudas políticas e diplomáticas chegaram também ao PAIGC, à FRELIMO e ao MPLA, como as do Conselho Ecuménico das Igrejas que agrupava a maioria das confissões evangélicas e que lhes concedeu uma importante ajuda económica.
Angola
Em Angola, no plano militar, o ano começou com a Operação Golpe de Flanco em Santa Cruz do Cuango (Uíge) onde a FNLA já tinha infiltrado cerca de 600 efectivos, pertencentes ao 2º Batalhão do ELNA, com o objectivo de estabelecer-se na zona, tentando ligá-la à região dos Dembos, onde já actuava. As forças portuguesas ocuparam o seu acampamento onde capturaram 400 nativos e destruíram as palhotas, mas a guerrilha furtou-se ao combate directo e apenas realizou emboscadas em lugares escolhidos, causando três mortos ao Exército colonial. Mas quando foi evacuado o grosso do efectivo empenhado e na zona ficou apenas um batalhão, provocou-lhe onze mortos. Esta foi a acção de maior envergadura realizada pela FNLA neste período. Em Abril, embora uma companhia de Comandos tenha actuado na zona de Vila Pimpa contra efectivos do FNLA, a partir do acordo entre Portugal e Mobutu a actividade das forças de Holden Roberto praticamente cessou no Norte e no Leste.
MPLA
O MPLA continuou a ser a organização mais empenhada na guerra. Em 28 de Janeiro manifestou-se contra o projecto Cunene por estar planeado para perpetuar o poder branco na África Austral, juntando à acção política uma considerável acção militar. Em 16 de Fevereiro, dia de Carnaval, um grupo de guerrilheiros atacou com grande poder de fogo o aquartelamento de Caripande (Moxico) provocando diversos feridos. No princípio de Junho uma patrulha do MPLA chegou à zona de Changar (Cuando-Cubango) para tentar obter a cumplicidade da população local com vista à sua posterior implantação na zona que devia ser a sua 6ª Região Militar. Mas a partir de então a sua capacidade bélica seria neutralizada pelo Exército colonial que estava a preparar-se para responder ao seu avanço.
Leste de Angola
Em 8 de Fevereiro foi aprovada pelo ministro da Defesa a criação da Zona Militar Leste, englobando os distritos de Moxico, Lunda, Cuando-Cubango, Bié e parte de Malange, onde o responsável militar exercia também o poder político. Para seu comandante foi designado o general Bettencourt Rodrigues, que estabeleceu o seu quartel-general no Luso, sendo o seu único superior hierárquico o comandante-chefe da colónia, general Costa Gomes. Por outro lado, em finais de Agosto, o comando português criou os Grupos Especiais (GE) com o objectivo de comprometer as populações na guerra. Os seus integrantes recebiam formação e material, encarregando-se eles próprios de recolher informações sobre o inimigo, neutralizando-o de acordo com a cadeia de comando militar. Dois terços dos seus efectivos ficaram no Leste. Outro aspecto que fez pender a guerra para o lado português foi a contínua utilização de herbicidas e desfolhantes que queimavam as plantações e os pastos dos animais e deixavam as populações e a guerrilha sem comida. A ONU, a imprensa internacional e especialmente o MPLA realizaram vigorosas campanhas contra a guerra química, mas sem obter nenhum resultado. O conjunto destas acções, para além da colaboração da UNITA com as autoridades coloniais, fez com que na segunda metade de 1971 o MPLA entrasse em queda livre. As revoltas de combatentes no Leste prosseguiram e cresceram em relação inversa aos êxitos militares portugueses. Assim se verificaram divergências no campo de Mgagão-Irende, na Tanzânia, e em Cassanga houve uma insubordinação dos quiocos contra Iko Carreira que chefiava a zona. Também os guerrilheiros mbundu se mostraram descontentes por serem comandados por membros de etnias do Norte de Angola e por brancos e mulatos. As coisas também não iam melhor na I Região Militar onde, para além da detenção e do interrogatório pela PIDE/DGS do comandante Benigno Lopes (Ingo), a polícia obteve informações muito valiosas sobre a organização do MPLA nos distritos de Cuanza Norte e Luanda. Também os problemas se acumularam na 4ª Região (Lunda-Malange), onde em Outubro o Exército português matou Nicolau Gomes Spencer, comissário político daquela zona, o que mostrava as profundas dificuldades da guerrilha, que não era capaz de proteger os seus quadros superiores. Por sua vez, nos distritos de Moxico e Cuando-Cubango e também no Bié e no Huambo (respectivamente 3ª e 5ª Região Militar), o MPLA teve que enfrentar a UNITA, que passou a colaborar com as tropas coloniais na sua perseguição. O comando português tentou, sem êxito, integrar a UNITA e fazer de Savimbi um novo Alexandre Taty.
A manobra de Savimbi
Nos princípios de Fevereiro, a UNITA estava preparada para fazer a guerra contra Portugal. Para isso dividiu os seus efectivos em duas regiões militares separadas pelo rio Bungo, colocando os da direita sob a autoridade de N’Zau Puma e os da esquerda de Jonas Savimbi. Segundo um relatório de finais de Março do comando português, na frente leste a UNITA dispunha de 1300 guerrilheiros, o MPLA teria 6000 e a FNLA uns 700. Para além da diferença numérica, havia outra condição importante: todos os efectivos de Savimbi estavam em seu redor e não podiam aumentar, pois não havia muita mais população e tão-pouco dispunham de meios para a armar, ao contrário dos seus opositores. Esta situação de debilidade estrutural fez com que Savimbi negociasse com o poder colonial enquanto a conjuntura não lhe fosse favorável, mas nunca pensou em pôr-se às ordens de Lisboa. Por isso, a teoria de apresentar Savimbi como traidor, embora sugestiva e com documentação probatória das suas relações com o poder colonial, não deixa de demonstrar que se sentia – assim como os seus correligionários que fundaram a UNITA – um patriota angolano. Para além disso, como tinha uma apreciável cultura política, sabia que o seu país, como a maior parte do continente africano, seria independente e que o relógio da história corria a seu favor, só precisando de superar esse lapso de tempo sem ser “magoado”, e esperou. Outra era a visão das autoridades portuguesas, a começar pelo general Costa Gomes, que acreditou que, sendo a vida no mato muito dura e Savimbi já ter provado as comodidades da civilização, acabaria por aderir ao lado português com armas e bagagens, mas equivocou-se. A aproximação de Savimbi a Portugal deu-se através dos madeireiros portugueses que para poderem trabalhar pagavam à UNITA, com quem trocavam víveres e medicamentos por produtos que os guerrilheiros obtinham na floresta. A PIDE/DGS, de acordo com as autoridades militares, supervisionou os contactos que se iniciaram em Setembro e no mês seguinte estabeleceu-se um cessar-fogo de facto, comprometendo-se a UNITA a lutar contra o MPLA. A relação entre o seu movimento e o Exército colonial liquidaria os seus rivais e assim Savimbi assegurava que quando chegasse a inevitável descolonização teria capacidade para actuar. Entretanto, o comando português elaborou em 3 de Dezembro um projecto que previa a dissolução da UNITA nos corpos africanos e um cargo importante para Savimbi. Mas este soube rodear a situação e manter uma ambiguidade táctica com o poder colonial sem deixar perceber a sua convicção de que Angola seria independente e com uma UNITA poderosa.
Guiné
Na Guiné, fracassada a aventura de Conacri, a situação agravou-se para Portugal como se reconhecia no relatório elaborado no primeiro trimestre do ano pelas autoridades militares do território, pois o potencial militar do PAIGC crescia em todos as zonas, sendo o seu principal objectivo manter abertos os corredores que uniam as frentes de combate com as retaguardas do Senegal e da Guiné-Conacri, enquanto tentava que os itinerários usados pelos portugueses fossem cada vez mais inseguros. Assim, em Março atacou dois botes no rio Cacine que se dirigiam a Gadamael, provocando a morte de um soldado português, que se afogou depois de cair à água. Também as comunicações terrestres foram visadas com maior intensidade através de emboscadas e da colocação de minas. O exemplo mais dramático desta escalada ocorreu em Outubro no Leste, em Duas Fontes, onde morreram cinco militares e outros quatro ficaram feridos. O objectivo era hostilizar e flagelar destacamentos portugueses ou milícias locais isoladas, como foi feito na área de Naga-Biambi no chão fula. Ataques que também se alargaram aos centros urbanos. Em 9 e 10 de Março foi atacado Gadamael e em dias sucessivos as seguintes povoações: em 20, Bolama, em 22, Farim, em 28, Guileje e em 31, Fulacunda. Mas o maior impacto resultou dos ataques a Bissau com foguetões de 122mm, em 9 de Junho, lançados por um grupo comandado por André Gomes. Em 26 do mesmo mês ocorreu outra incursão similar – o ataque a Bafatá, a segunda cidade do país, onde foram destruídos parcialmente quatro edifícios, a estação meteorológica e outras instalações militares e administrativas. Em 26 de Novembro, Bafatá voltou a ser atacada e em 30, numa acção coordenada, também foram atingidos Catió (Sul) e Farim e Mansoa (Norte). Também foram realizadas acções de guerrilha urbana e actos de sabotagem em Bula, Bissorã, Mansoa, Nhacra, etc.
PAIGC
O PAIGC, para além de se apoderar da iniciativa militar, também continuou mantendo a iniciativa política do conflito. No dia 1 de Janeiro foram entregues ao presidente do Crescente Vermelho da Argélia, Mouloud Belahouane, um cabo e três soldados do Exército colonial, que foram enviados a Piteira Santos, representante em Argel da Frente Patriótica de Libertação Nacional, e, nove dias mais tarde, Spínola libertou 91 detidos. Mas a publicidade das duas actuações favoreceu o PAIGC, porque os meios internacionais deram grande relevo às declarações dos ex-cativos portugueses que denunciaram a Guerra Colonial como injusta e asseveraram que o Exército utilizava bombas de napalm contra a guerrilha. Em Janeiro, Cabral viajou para a Suécia e para a União Soviética, obtendo dos primeiros apoio para transportes, saúde e material escolar e, dos segundos, ajuda militar. Em Julho participou na cimeira da OUA realizada em Adis Abeba, onde afirmou a sua intenção de proclamar a independência unilateral da Guiné-Bissau, apesar de não fechar as portas a uma negociação com Portugal, sem condições prévias. Isso mesmo veio a ratificar em Londres, em Outubro, durante uma visita propiciada pelo Partido Trabalhista.
Acções militares na Guiné
A reacção do general Spínola à ofensiva do PAIGC, encerradas todas as possibilidades de negociação, foi a de vencer o adversário militarmente. Em Janeiro, foram bombardeadas as áreas libertadas: no Sul, as povoações de Cubisseco, Cubucaré e Balana; e, no Norte, Oio e Saara. Segundo fontes da guerrilha, 28 tabancas teriam sido destruídas. Também foi feito um esforço para utilização de mais efectivos provenientes do recrutamento local, como se tornou evidente na cerimónia realizada em Bissau no dia 11 de Novembro, na qual jurou bandeira a 2ª Companhia de Comandos Africanos e um destacamento de Fuzileiros Especiais. Era a constatação da progressiva africanização da guerra. Mas a incapacidade para inverter a situação militar fez com que Spínola autorizasse, em 13 de Novembro, um ataque ao acampamento que o PAIGC tinha em Faré Boké (Senegal) com tropas africanas especiais convenientemente disfarçadas com uniformes e armamento da guerrilha. A operação apanhou desprevenidos os elementos do PAIGC, convertendo-se numa carnificina em que pereceram civis e militares senegaleses, incluindo muitos guerrilheiros, o que levou à denúncia do Senegal perante o Conselho de Segurança da ONU que, por duas vezes, condenou Portugal. Mas o comando colonial não podia prescindir de atingir a retaguarda do inimigo porque assim debilitava o seu aparelho logístico. Também, em finais de Novembro, a aviação portuguesa bombardeou diversas aldeias do Norte em poder da guerrilha, entre outras Cambadju, Dendo, Dumbal e Casa Nova. O PAIGC referiu que foram destruídas 12 aldeias e as suas reservas. Mas o que demonstrou a impossibilidade do triunfo militar português foi a Operação Safira Solitária iniciada em 20 de Dezembro na zona libertada do Morés. A ofensiva tentou destruir as infra-estruturas da guerrilha e mesmo apanhados de surpresa os guerrilheiros do PAIGC e as milícias populares resistiram ao ataque. A força portuguesa teve oito mortos e 53 feridos, sendo 12 com gravidade. As baixas do PAIGC foram de 215. Apesar do comando português ter dito que tinha conseguido aniquilar a guerrilha naquela zona, a verdade é que, quando as forças portuguesas se retiraram, o PAIGC voltou a ocupar a região.
Guiné: acção psicossocial
No campo da acção psicológica, a principal manobra planeada por Spínola foi a de continuar com os Congressos do Povo. Em Maio realizou-se o segundo, que teve duas fases: uma regional e outra provincial. A regional desenrolou-se nas sedes dos
concelhos e circunscrições, participando os habitantes de uma determinada zona independentemente da sua etnia; e a fase provincial realizou-se em Bissau, agrupando os guineenses por etnias, aparentadas ou relacionadas por laços culturais. Constituíram-se cinco grandes conjuntos: um formado por manjacos, papéis e macanhas; outro por balantas; outro por mandingas, jacancas, caracoles, pajadincas, sossos, bambaras, beafadas e nalus; outro pelos fulas (fulas forros, fulas pretos, futa fulas, fulas do Toro ou torancas e fulas do Boé ou boencas); e o último por bijagós, felupes, baiotes, cassongas e banhuns, agrupados pela sua escassa importância demográfica, embora sem nenhum parentesco étnico ou cultural. Moçambique Em Moçambique a guerra também se complicou para o poder colonial. As zonas com maior operatividade eram Cabo Delgado com 70% do total das acções bélicas, Niassa com 20% e Tete com 8% aproximadamente. Mas depois da operação Nó Górdio a FRELIMO transferiu grande parte dos seus efectivos para Tete, onde reforçou as suas actividades político-militares, infiltrando efectivos a partir da Zâmbia e, muito antes do rio Zambeze ser desviado, unidades da guerrilha já se tinham estabelecido na margem direita do rio Capoche. Os estrategos militares não tinham previsto a eventualidade da implantação da FRELIMO em Tete e por isso a acção psicossocial só muito parcialmente se tinha dirigido à população deste distrito. Para além disso, a Operação Nó Górdio enfraqueceu precisamente o dispositivo militar de Tete. Situação que continuou quando, no princípio de 1971, se desenvolveu também em Cabo Delgado, e ao longo do rio Rovuma, a Operação Fronteira, que também contou com poderosos efectivos com o objectivo de destruir os depósitos de material da guerrilha. A actuação militar devia ser acompanhada pela criação, ao longo do curso do rio, de um sistema de impermeabilização da fronteira, por largas centenas de quilómetros, com arame farpado, vigilância electrónica, campos de minas, etc., mas não chegou a concretizar-se porque os gastos de Cahora Bassa deixaram este projecto sem financiamento. Outro dos objectivos da Operação Fronteira era o de captar as populações da zona para a sua integração em aldeamentos, o que tão-pouco foi conseguido na sua totalidade.
Tete
O mesmo sucedeu em Tete, onde este tipo de aldeias só tinham sido começadas a construir de forma precipitada em 1970, antes do alastramento da subversão. Para além disso, neste distrito, em alguns destes centros de reagrupamento, a população chegou a passar fome fugindo em massa e refugiando-se no Malawi, Rodésia ou no mato. A abertura da frente de Tete obrigou a que os efectivos que antes faziam a guerra nos distritos de Niassa e Cabo Delgado se repartissem em três, perturbando as forças portuguesas que operavam no terreno e causando-lhes um desequilíbrio estratégico. Perante isso, em Maio, o comandante-chefe Kaúlza de Arriaga criou a Zona Operacional de Tete (ZOT), à imitação da Zona Militar do Leste de Angola, ficando sob a autoridade do coronel Armindo Videira, com poderes militares e civis. Contudo, diferentemente do que sucedeu em Angola, aqui a autoridade militar não conseguiu subordinar plenamente a administração civil e tão-pouco chegou a haver verdadeira coordenação entre os diversos comandos militares nem entre estes e a PIDE/DGS. Dependendo da ZOT foi criado um comando específico para a defesa de Cahora Bassa. Também em finais de Janeiro se tinham criado os Grupos Especiais (GE) e em meados de Abril os Grupos Especiais Pára-quedistas (GEP), organizando-se, em finais de Junho, os respectivos centros de instrução no Dondo. Em Setembro foi ainda constituída a 4ª Companhia de Comandos africanos. A pouca disponibilidade de efectivos de quadrícula obrigou com frequência a utilizar tropas especiais que cometeram graves massacres contra a população civil de Tete. A primeira ocasião ocorreu na primeira semana de Maio nas povoações de António, Mahanda, Capinga e Catacha, onde tropas helitransportadas portuguesas fizeram 30 mortos entre a população civil. Outra actuação brutal ocorreu entre 3 e 5 de Setembro também por tropas helitransportadas, mas desta vez rodesianas, que ocuparam as povoações de Devetene, Mandué e Singa executando 15 civis incluindo velhos, mulheres e crianças. Em 10 de Outubro tropas africanas portuguesas na localidade de Kambué provocaram 19 mortos com o pretexto da morte de um capitão português que dias antes tinha morrido ao pisar, com o seu jipe, uma mina nas imediações de Matando. Outra matança de 23 civis de diversas aldeias das regiões de Mucumbura e Buxo teve lugar nos dias 2, 3 e 4 de Novembro e foi efectuada por membros da 28ª Companhia de Comandos. Estas ocorrências foram denunciadas pelos padres de Burgos Alfonso Valverde e Martín Hernández, que exerciam o seu apostolado em Mucumbura (diocese de Tete). A resistência a aceitar a dominação colonial provocou um grave cisma entre o baixo clero e a Conferência Episcopal de Moçambique presidida pelo bispo de Quelimane, Francisco Nunes Teixeira, que, na opinião dos primeiros, era excessivamente benevolente e até cúmplice da forma como decorria a guerra. O compromisso da hierarquia com o poder colonial tornou-se evidente em 15 de Maio, quando se mostrou compreensiva com a expulsão de 39 Padres Brancos que tiveram que abandonar Moçambique.
Política interna
Em relação à governação do país, Caetano perdeu toda a iniciativa e crédito político, pois aumentou a repressão e reforçou a censura de imprensa e as suas iniciativas, deixando impassível a ala centro-esquerda, eram asperamente criticadas pela ultra-direita salazarista. Tal ocorreu com a nova Lei Orgânica do Ultramar promulgada em 19 de Junho, segundo a qual Angola e Moçambique passavam a ter o título honorífico de Estados. O Estado português continuava a ser unitário, mas a ter regiões autónomas, definindo-se os seus poderes e os que competiam ao Estado central. Pretendia-se assim dotar os territórios portugueses de África de uma autonomia progressiva para ajudar a distender o ambiente internacional de hostilidade, dando a impressão de que a política portuguesa estava de facto a mudar. Deste modo, em 16 de Agosto foi aprovada a revisão constitucional que procurava uma via intermédia entre os deputados liberais e os da extrema-direita para realizar as reformas que se consideravam necessárias. Os primeiros desejavam que se voltasse à eleição por sufrágio universal do presidente da República e que se reconhecessem no texto algumas liberdades fundamentais: de imprensa, de reunião, de associação; e também a redução dos tempos de detenção preventiva e a presença de advogados nos interrogatórios da polícia, etc. Os segundos queriam que se mantivesse intacta a política ultramarina de Salazar, tendo inclusivamente chegado a pressionar o Governo, pois pensavam que a revisão constitucional abria a porta à independência do Ultramar. Para impedir que prosperasse este projecto de lei, a extrema direita manifestou-se com força e tornou a aparecer o parecer de 1962, em que Caetano pedia a constituição dos estados unidos portugueses. Também, no dia 28 de Maio, num jantar celebrado no Porto para comemorar o golpe de Estado de 1926, foi criticada a atitude revisionista de Caetano em relação à herança recebida. Por seu lado, o professor da Universidade de Coimbra, Pacheco de Amorim, no seu livro Na hora da verdade, que distribuiu a todos os deputados da Assembleia Nacional, afirmava que Caetano negava a política de integração nacional e atraiçoava a política africana de convivência entre os portugueses de todas as raças. Por outro lado, a mobilização da ala ortodoxa do salazarismo exprimia-se em diversas publicações periódicas muito críticas para Caetano, destacando-se em Lisboa a monárquica Consciência Nacional, Política, dirigida por Jaime Nogueira Pinto, e Itinerário, por Vale de Figueiredo, e, em Coimbra, Cidadela, impulsionada por José Miguel Júdice e Lucas Pires, entre outros. Mais significativa, e de maior peso, foi a oposição ao texto, do ex-ministro do Ultramar, Adriano Moreira. Para ele a reforma constitucional de Caetano foi desastrosa porque, segundo disse, no momento em que havia um grande cansaço da guerra, que exigia um grande sacrifício da juventude, a reforma constitucional, ao revogar o Título VII referido às províncias ultramarinas, onde se definia o conceito estratégico nacional, deixou um Exército de mais de 100 000 homens combatendo sem saber para quê, uma vez que os objectivos estratégicos nacionais foram alterados sem formular outros. E as forças contrárias encontraram a partir daí maior passividade no regime e foram desenvolvendo as teses que são conhecidas até derrubar o regime em 1974. Uma guerra longa sempre tem efeitos inevitáveis para a população.
Política externa
Os apoios do Governo português na frente internacional continuavam a ser muito sólidos, especialmente da França, Estados Unidos, Espanha e Brasil. De facto, em Fevereiro, o ministro dos Negócios Estrangeiros português, Rui Patrício, negociou em Paris a aproximação de Portugal à CEE e o seu colega francês, Maurice Schumam, visitou pouco depois Lisboa. Em Junho o ministro da Fazenda brasileiro chegou à capital portuguesa e o seu homólogo português, Manuel Cota Dias, viajou a Brasília. Em Setembro Rui Patrício deslocou-se ao Brasil para assinar uma convenção sobre igualdade de direitos e deveres entre cidadãos de ambas as nações. O vice-presidente dos Estados Unidos, por sua vez, iniciou uma visita oficial a Lisboa em 26 de Julho e em Dezembro, no quartel-general da NATO em Bruxelas, o secretário de Estado norte-americano e o ministro dos Negócios Estrangeiros assinaram um acordo, segundo o qual Portugal autorizava os seus aliados a utilizar a Base das Lajes até Fevereiro de 1974. Caetano foi também o anfitrião da cimeira que realizaram Richard Nixon e Pompidou na ilha Terceira (Açores) em 13 de Dezembro. Em elação a Espanha, em 21 de Junho o Governo português ratificou o acordo bilateral de cooperação científica e técnica que tinha sido assinado em Madrid em Maio do ano anterior e em 13 de Julho Rui Patrício visitou oficialmente Espanha. Igualmente, a diplomacia portuguesa foi apoiada maioritariamente pela NATO. De facto, em 3 de Maio o Conselho Atlântico reuniu-se em Portugal para escolher como novo secretário-geral Joseph Luns, embora nem todos os países da aliança atlântica apoiassem a Guerra Colonial. De facto, nessa reunião o ministro dos Negócios Estrangeiros da Noruega criticou duramente a política africana de Lisboa.
Ala Liberal
Mas onde mais nitidamente se evidenciou o fracasso de Caetano e a sua incapacidade para desenhar uma verdadeira política reformista foi na sua relação com os membros da Ala Liberal, o que invalidou definitivamente a sua suposta terceira via que o afastava tanto da ortodoxia do Estado Novo como das reformas democráticas. A Ala Liberal, apesar dele, continuou a tentar conseguir uma representatividade institucional através da Sociedade de Estudos de Desenvolvimento Económico e Social (SEDES), que em Outubro conseguiu formar o primeiro conselho regional no Porto. Nesta cidade a SEDES tinha 72 membros, 16 em Évora e 320 em Lisboa. Com antecedência, em 28 de Junho, e durante os debates sobre a revisão constitucional, o líder do grupo anunciou que não participaria mais neles, por considerá-los pouco ajustados ao direito, tomando a mesma atitude outros deputados deste sector.
Igreja
Também a Igreja iniciou um processo gradual e significativo de distanciamento em relação ao regime, com a nomeação por parte do Vaticano, em Maio, de D. António Ribeiro como responsável do Patriarcado de Lisboa, em substituição do cardeal Gonçalves Cerejeira, depois de 42 anos à frente da Conferência Episcopal portuguesa. O seu substituto, que dois anos mais tarde seria nomeado cardeal, foi o artífice da diminuição da proximidade que existia entre o Estado Novo e a Igreja Católica.
Acção armada
A imobilidade política de Caetano provocou também uma crescente radicalização na esquerda, visível pelo aumento das acções armadas e pela reorganização da extrema-esquerda ligada ao estalinismo e ao maoísmo. Duas organizações impulsionaram as acções contra a máquina colonial. A mais efectiva foi a ARA, que realizou três atentados. Em 8 de Março um comando destruiu cinco helicópteros e oito aviões e provocou danos em outras 15 aeronaves, causando danos no valor de 80 000 contos da época. Em 3 de Junho ocorreu outro atentado contra as instalações dos CTT que interrompeu as comunicações telefónicas e radiotelegráficas tanto no interior de Portugal como entre o país e o estrangeiro, numa invulgar demonstração de força quando em Lisboa se reunia o Conselho Atlântico e havia um grande número de jornalistas internacionais. Igualmente atacou as instalações do Comando Ibero-Atlântico da NATO em Oeiras, em finais de Outubro, conseguindo fazer explodir um artifício que derrubou o átrio envidraçado do edifício. Contudo, toda a actividade do braço-armado do PCP e do próprio partido viu-se seriamente comprometida pela detenção de Augusto Alberto Ferreira Lindolfo em 30 de Maio de 1971, responsável da direcção da organização regional do Sul, juntamente com a sua mulher e uma filha de dois anos. Depois de ser torturado selvaticamente delatou a organização, o que levou à prisão de quatro centenas de pessoas, muitas delas não tendo nada a ver com o PCP, sendo apenas oposicionistas. Esta delação permitiu desmantelar a ARA e desestruturar o partido, desde a Marinha Grande até ao Algarve. Em 28 de Novembro a direcção do PCP, no meio da grande desmoralização por que passava, solidarizou-se com o seu braço-armado, que rotulava de organização autónoma com formas específicas de luta, para diferenciá-la do partido, tentando que não fosse acusado de terrorista, ao mesmo tempo que criticava a actuação das Brigadas Revolucionarias (BR) que realizavam simultaneamente outros atentados, fazendo-o com eficácia. De facto, a primeira actuação das BR consistiu na destruição dos equipamentos electrónicos destinados ao controlo de mísseis nucleares, que pertenciam à NATO e que se encontravam em Pinhal de Arneiro, na Fonte da Telha, construídos recentemente; cinco dias mais tarde, outra carga explosiva destruiu uma bateria de peças de artilharia antiaérea, em Santo António da Charneca. A outra organização armada, a LUAR, encontrava-se desmantelada no interior do país e limitou-se neste período a realizar acções de propaganda e de denúncia do regime no exterior. Assim, no 1º de Maio, militantes seus assaltaram o consulado de Portugal em Roterdão e em 4 de Junho ocuparam o do Luxemburgo.
Acção Socialista Portuguesa
Pela sua parte, a Acção Socialista Portuguesa (ASP) no exílio realizou em Fevereiro a segunda reunião de grupos no estrangeiro a que assistiram alguns militantes do interior. Esta consolidação orgânica da ASP ocorreu em paralelo com a sua aproximação aos seus homólogos europeus. Assim, em 28 de Maio uma delegação sua presidida por Mário Soares participou em Bruxelas no VIII Congresso dos partidos socialistas europeus.
MRPP
Entre a constelação dos grupos situados à esquerda do PCP deve destacar-se a constituição do Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado (MRPP) que em Fevereiro começou a publicar o seu porta-voz Luta Popular. Em paralelo, no Porto, surgiu o periódico O Grito do Povo, em redor do qual se foi constituindo um grupo que se situava no mesmo universo ideológico que o anterior.
Movimento operário
Mas a principal oposição foi a sindical, pois o movimento operário, oprimido pela contínua perda de poder aquisitivo, iniciou uma escalada grevista sem precedentes que afectou todos os sectores produtivos ao mesmo tempo que se fortalecia o sindicalismo de classe. Assim, em Março, 21 sindicatos aprovaram o “Programa Básico dos Sindicatos” no qual se misturavam reivindicações salariais e laborais com outras de carácter político: liberdade sindical e direito à greve. Um dos conflitos laborais com maior incidência foi o dos trabalhadores da banca. Em Junho tinha sido detido pela PIDE/DGS o sindicalista Daniel Cabrita, um dos principais dirigentes das estruturas clandestinas do Sindicato Nacional dos Empregados Bancários do Distrito de Lisboa. Apesar disso, em 26 de Julho, o sindicato convocou uma manifestação na Baixa de Lisboa que foi abortada pela brutalidade policial com numerosas detenções, para além de nove feridos. Em 10 de Agosto, o Governo encerrou definitivamente as sedes deste sindicato em Lisboa e no Porto, ao mesmo tempo que as suas direcções foram suspensas e substituídas por comissões administrativas.
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