Tete: o mais difícil dos teatros de operações
A partir de 1970, a zona de Tete, que corresponde ao território da península de Tete e ao “istmo” até à Beira, passou a ser o mais difícil dos teatros de operações em que as forças portuguesas actuavam.
O meio físico, com um clima continental de violentas amplitudes térmicas, o relevo do terreno, com grandes vales rochosos, dificilmente transponíveis, as doenças endémicas, da malária à doença do sono, tornavam a vida dos militares quase insuportável e muito difícil a realização de operações. Os deslocamentos eram difíceis, tanto por terra como pelo ar, as aeronaves, pelas altas temperaturas e altitudes, sofriam de severas limitações e até as comunicações rádio eram problemáticas.
O meio humano era ele também muito complexo. As populações nativas apresentavam graus muito diversos de contacto com os europeus, em que se misturavam um número significativo de antigos mineiros na África do Sul com camponeses isolados. Quanto aos brancos, dedicavam-se ao pequeno comércio e à agricultura e muitos viviam em regiões isoladas como cantineiros ou fazendeiros (machambeiros).
As forças portuguesas responderam à acção da FRELIMO correndo quase às cegas atrás dos acontecimentos, prendendo as autoridades tradicionais, realizando operações, por vezes com rodesianos, causando a morte indiscriminada de populações, entrando em conflito com as missões religiosas.
Ao mesmo tempo iniciava-se a construção da barragem de Cahora Bassa e era necessário deslocar as populações das áreas inundadas.
As autoridades militares e civis aproveitaram o pretexto da subida das águas para reunirem as populações em aldeamentos estratégicos, ao abrigo do contacto com a FRELIMO, mas o aldeamento constituía uma violência e a forma desastrada como foi feito acentuou o ressentimento contra as autoridades portuguesas e agravou a situação militar no terreno, que entrou numa espiral de violência. No final de 1970 e no início da 1971, começaram a chegar à zona de Tete as tropas especiais que tinham estado envolvidas nas grandes operações contra os macondes. Vinham de um cenário operacional de grande intensidade, de quase guerra convencional, onde era inimigo a abater qualquer ser humano que estivesse fora dos arames farpados.
Foi a algumas destas tropas que o Comando-Chefe de Moçambique encarregou de pacificar a zona de Tete…
Conflitos de competências e dispersão de autoridade
A ZOT deveria ter todas as prerrogativas de uma zona militar, com uma clara subordinação das autoridades civis à autoridade militar, mas essa subordinação nunca foi efectiva e a coordenação entre entidades – comando militar, governos de distrito, PIDE/DGS – foi má, até ao nível pessoal entre os responsáveis.
Pulverização de actores militares
O comandante da ZOT tinha no seu território comandos militares específicos com autonomia, áreas de actuação e missões que, em boa medida, lhe escapavam ao controlo. Na ZOT actuaram o Comando Operacional da Defesa de Cabora Bassa (CODCB), o Comando Operacional das Forças de Intervenção (COFI), o Comando das Cargas Críticas (CCC), além do Centro de Instrução dos GE (CIGE).
A estes podem ser adicionados, como actores com iniciativa, a própria DGS e o engenheiro Jorge Jardim.
Conflitos e desconfianças pessoais
Nas palavras de Rebelo de Sousa, governador-geral, existiam três poderes em Moçambique: o do governador, que devia ser muito e era nenhum, o do comandante militar, que mandava na tropa, e o do engenheiro Jardim, que mandava de facto em quase tudo.
Com tal divisão de poderes nunca seria fácil governar Moçambique, mesmo numa situação de paz. Em tempo de guerra, com três pessoas tentando impor cada uma delas o seu programa, a situação tornou-se impossível de gerir.
Três personalidades e três programas
As três personalidades do triângulo do poder em Moçambique, em 1971, eram o engenheiro Arantes e Oliveira, governador-geral, o general Kaúlza de Arriaga, comandante-chefe, e o engenheiro Jorge Jardim, com poder próprio.
Os três desconfiavam uns dos outros e tentavam adivinhar as jogadas que iriam realizar para as neutralizar. Os três eram homens que tinham estado muito ligados a Salazar e que tinham com Marcelo Caetano, o seu sucessor, relações e expectativas que os faziam divergir.
Arantes e Oliveira tinha sido um dos grandes defensores da construção da barragem de Cahora Bassa e queria manter o Ultramar como o regime sempre o vira. Era um integracionista, aliado de facto a Américo Tomás. Estava no fim da carreira, nada mais queria que controlar Marcelo Caetano, não lhe dando pretextos para desvios autonomistas.
Kaúlza de Arriaga tinha um programa pessoal de conquistar o máximo poder, qualquer que ele fosse. Podia ser a Presidência da República Portuguesa ou a presidência de uma eventual federação de Angola e Moçambique, se o Exercício Alcora resultasse.
Jorge Jardim queria um papel na história da África. Queria ser um Lawrence da Arábia africano. Também podia ser um presidente de Moçambique, num regime multirracial. Um De Klerk moçambicano, avant la lettre. Podia até dividir Moçambique com a FRELIMO.
Arantes e Oliveira e Kaúlza de Arriaga
O governador-geral e o comandante-chefe mal se relacionavam, embora ambos tivessem pertencido a governos de Salazar. Arantes e Oliveira era um antigo oficial de Engenharia, conhecia as ambições de Kaúlza e sabia que a sua passagem por Moçambique era um degrau na sua escalada. Kaúlza, por seu lado, estava convencido de que Arantes e Oliveira e, através dele, a administração civil, tudo fariam para boicotar a sua acção de comandante militar.
As disputas entre os militares da ZOT e as autoridades administrativas chefiadas por Gouveia e Melo, o secretário-geral do Governo de Moçambique, sobre a política de aldeamentos, eram a prova dessa má vontade de Arantes e Oliveira.
Kaúlza nunca se entendeu com Jorge Jardim
Jorge Jardim era um espinho permanentemente cravado no comandante-chefe, através do domínio que o engenheiro tinha sobre os GE, sobre as milícias dos distritos, sobre a DGS, sobre a comunicação social, sobre as relações com os países vizinhos.
Jardim era, para Kaúlza de Arriaga, um não existente, que se revelava demasiado activo para o seu gosto.
Jardim espalhava a ideia da incapacidade de Kaúlza
Jardim, por seu lado, intrigava junto da DGS (o que não era necessário), das autoridades rodesianas e sul-africanas contra Kaúlza, difundindo a ideia de que ele não era capaz de controlar a situação militar.
Quando os massacres de Wyriamu lhe deram essa oportunidade, Jardim ajudou a enterrar Kaúlza de Arriaga no escândalo.
A FRELIMO aproveita a ZOT: “a zona operacional das traições”
A FRELIMO aproveitou a dificuldade das autoridades portugueses se moverem no terreno, que elas próprias tinham minado, para passar o Zambeze para sul e descer em direcção à Beira e a Vila Pery, para acolher as populações fugidas dos aldeamentos, para reorganizar os serviços e instalar bases que, inclusivamente, serviam aos guerrilheiros da ZANU que combatiam o regime branco da Rodésia.
Zona Operacional de Tete e Zona Militar Leste: os mesmos conceitos produzem diferentes resultados
A Zona Militar Leste (ZML), em Angola, e a Zona Operacional de Tete (ZOT), em Moçambique, são respostas idênticas a problemas idênticos, mas a primeira correu bem e a segunda não.
Em ambos os casos, vastas áreas foram colocadas sob a autoridade militar para garantir a segurança de uma zona considerada decisiva na manobra política e militar e onde se encontravam objectivos económicos de alto valor, com forte presença de capitais e interesses internacionais. No Leste de Angola, a Diamang e as minas de Cassinga, em Tete, a barragem de Cahora Bassa. Ambas tinham fronteira com a Zâmbia e com um país de apoio, num caso a África do Sul, no outro a Rodésia. Ambas eram o caminho de acesso a uma zona decisiva, num caso o planalto central de Angola, no outro a Beira, em ambas foi necessário aldear grande número de populações.
No entanto, a ZML conseguiu evitar o desenvolvimento das acções de guerra e impedir o avanço dos guerrilheiros, enquanto a ZOT viu os níveis de violência aumentarem e os guerrilheiros da FRELIMO avançarem em direcção à Beira.
Alguns factores explicam esta diferença de resultados.
Em primeiro lugar, a ocasião e a oportunidade. A ZML foi criada antes do dispositivo do MPLA se instalar, a ZOT foi depois. É a diferença entre estar antes do inimigo ou andar atrás dele.
Em segundo lugar, a diferença entre o MPLA e a FRELIMO. Militarmente era enorme a diferença de capacidade entre ambos, com óbvia vantagem para a FRELIMO.
Em terceiro lugar, as organizações e os homens que as integram. Costa Gomes, o comandante-chefe de Angola, escolheu para comandante da ZML um general tido como dos mais brilhantes (Bettencourt Rodrigues) e este formou um Estado-Maior com oficiais escolhidos por si para cumprir a sua missão. Kaúlza de Arriaga não conseguiu convencer o brigadeiro Silvério Marques a assumir o comando da ZOT e entregou-o ao coronel Armindo Videira, um excelente militar, mas a que faltava, no mínimo, a autoridade do posto. O Estado-Maior da ZOT foi preenchido por militares em comissão normal. Existe, assim, uma diferença de imagem importante. Os militares da ZML podiam não ser melhores que os da ZOT, mas todos estavam convencidos que o eram.
Em quarto lugar, o nível de autoridade. O comandante da ZML, um general, assumiu por inteiro e sem deixar margem para dúvidas a autoridade militar e civil. O que também era resultado das boas relações ao nível superior, entre Costa Gomes, Rebocho Vaz (o governador-geral) e até o director da PIDE/DGS, São José Lopes. Na ZOT, Armindo Videira nunca foi o chefe incontestado, esteve sempre em disputa com os governadores dos distritos e outros actores dos poderes locais. As relações entre Kaúlza de Arriaga e o governador-geral não contribuíram para ele ter uma autoridade incontestada.
Em quinto lugar, e como resultado do anterior, na ZML as informações fluíam para as Forças Armadas, o que permitia realizar operações precisas.
Na ZOT eram notórias as desconfianças e as más relações entre a DGS e os militares.
Em sexto lugar, como resultado da diferença na organização dos comandos e estados-maiores da ZML – que cumpriam uma missão – e os da ZOT – que cumpriam uma comissão –, existiu da parte da ZML um emprego muito mais eficaz das tropas e uma manobra muito mais consistente e, logo, mais apta a produzir resultados continuados.
Na ZML foi executada uma manobra, enquanto na ZOT foram realizadas operações, e a diferença entre as duas zonas foi especialmente visível no modo de emprego das forças especiais, que na ZML eram utilizadas contra objectivos claramente definidos, enquanto na ZOT eram lançadas em ambientes de pouca definição.
Entre a ZML e a ZOT existiam contudo diferenças que tornavam o teatro de operações moçambicano mais difícil do que o angolano. O terreno e o clima eram muito mais exigentes, a presença das missões cristãs (católicas e protestantes) escrutinava a acção das forças militares e aumentava o risco de escândalo, a ZAMCO não possuía o poder político de influenciar decisões junto do poder político de Lisboa sobre a conduta das operações, como a Diamang e a Companhia Mineira do Lobito, e finalmente o Caminho-de-Ferro da Beira não tinha a importância do Caminho-de-Ferro de Benguela.
Por fim, em Angola não havia nenhum engenheiro Jorge Jardim.
O único sucesso da ZOT
Em 1973 e 1974, a única coisa que estava a correr bem na ZOT era a construção da barragem, por estar dentro do prazo, dos orçamentos e sem perturbações que colocassem em causa o plano de execução. Era fundamental, mas não era suficiente.
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