Os Padres Brancos: uma congregação de homens veteranos, profundamente integrados nas comunidades locais
Os Padres Brancos eram uma congregação fundada pelo cardeal Lavigerie no século XIX que exercia as suas actividades principalmente junto de comunidades muçulmanas e em países asiáticos. Os seus missionários distinguiam-se por serem homens veteranos que se integravam profundamente nas comunidades locais e falavam as línguas nativas. Estes padres tinham vindo para Moçambique em 1946, convidados pelo bispo da Beira, D. Sebastião Soares de Resende, que aproveitou as facilidades atribuídas pelo Acordo Missionário e para trazer padres de institutos e ordens religiosas estrangeiras e com eles responder às necessidades da sua diocese.
A congregação dos Padres Brancos deixou Moçambique por os seus missionários não aceitarem a política portuguesa em África. A decisão da sua saída verificou-se em Fevereiro de 1971 e foi aprovada em 15 de Maio pelo superior e pelo Conselho Geral da Congregação, que publicaram uma carta em termos de denúncia das políticas levadas a cabo pelo Governo português:
“(…) decidimos retirar de Moçambique os Padres Brancos (…) razões muito graves estão na origem desta decisão. Por um lado, a ambiguidade fundamental duma situação em que a nossa presença acaba por ser um contratestemunho. Por outro, a sinceridade duma missão que se recusa, em África, a ter duas faces contraditórias (…) os missionários constatam que a confusão entre a Igreja e o Estado, mantida pela prática constante das autoridades civis e das autoridades religiosas, é profundamente prejudicial à apresentação da mensagem evangélica e da verdadeira face da Igreja”. “ (…) demasiadas vezes, certos actos do Ministério Apostólico, sobretudo os que teriam como objectivo a promoção de uma verdadeira justiça social, são considerados como actividades subversivas e são, para certos militantes cristãos, com maiores contactos com a missão, pretexto para custosas vexações, até mesmo para prisões e maus tratos (…)”.
A reacção do Governo
A reacção do Governo português foi a de considerar a carta ofensiva da dignidade nacional e, mesmo, contrária aos princípios e leis constitucionais, determinando a expulsão dos autores, num prazo de 48 horas, de acordo com a lei geral aplicável no Ultramar a qualquer indivíduo cuja presença se revelasse indesejável.
A Conferência Episcopal de Moçambique também reagiu com a emissão de um comunicado a 1 de Junho de 1971, manifestando o apreço e gratidão pela obra realizada pelos Padres Brancos em Moçambique ao longo de 25 anos, e lamentando a decisão de abandonarem o território. Contudo, a Conferência Episcopal rejeitava as razões apresentadas na carta, afirmando saber que a decisão fora tomada sob influência de “grupos de pressão” contra a vontade expressa da maioria dos membros da Igreja, reafirmava a sua isenção política e a independência perante o Estado, e felicitava-se por aquela atitude isolada não ter sido partilhada por outros que tinham realizado obra missionária e de promoção digna de maiores elogios.
Já a “Mensagem do Conselho de Presbíteros da Beira”, de 13 de Agosto de 1971, assumiu posição diferente da Conferência Episcopal, expressando a inquietação quanto às limitações da liberdade de expressão de que os religiosos gozavam, conjuntamente com o seu bispo, no debate dos problemas da Igreja em Moçambique e rejeitava as acusações consideradas insultuosas contra padres e religiosas da Beira ou contra missionários, particularmente os não portugueses, considerados “agentes de subversão”.
A Igreja Católica de Moçambique e o conflito com as autoridades coloniais
A Igreja Católica de Moçambique foi atravessada nos últimos tempos coloniais por um conjunto de conflitos internos e externos que puseram em causa o seu histórico papel de aliada no processo de domínio dos povos africanos. A conflitualidade interna extremou-se nos pólos opostos de Lourenço Marques – reduto da retaguarda colonial – e do triângulo Beira-Nampula-Vila Cabral, onde a luta armada dirigida pela FRELIMO se impunha no terreno.
A conflitualidade externa teve os seus pontos mais dramáticos nas más relações dos bispos da Beira e de Nampula e dos missionários de várias congregações e a PIDE/DGS e representantes de vários poderes, como foi o caso de engenheiro Jorge Jardim.
Nada de semelhante, do ponto de vista da dissonância entre a Igreja Católica enquanto instituição e as autoridades coloniais ocorreu em Angola e nas restantes colónias.
A subversão do bispo da Beira
Existem várias razões para a diferença entre a Igreja Católica de Moçambique e as igrejas das outras colónias durante a guerra, mas uma delas é, certamente, a atitude do bispo da Beira, D. Sebastião Soares de Resende. É com este bispo que a contestação da política portuguesa em África se inicia dentro das instituições do regime e logo pela porta que mais o incomodava: a Igreja Católica e a utilização dos valores cristãos da humanidade que apregoava e não praticava. Ao bispo da Beira bastou defender e lutar pela justiça, pelos direitos humanos e pela elevação e educação dos moçambicanos. Para Adriano Moreira, ele tinha, por questão, os portugueses no mundo, por adversário, o problema das injustiças na sociedade colonial, como interlocutores, os pobres, e por eixo da roda, o Evangelho. O bispo empenhou-se com insistência na necessidade de intervenção da acção social, combatendo as estruturas que incluíam o trabalho forçado, a negação de direitos políticos e a limitação efectiva do acesso ao ensino superior (que só surgiu no território em 1962), defendendo a abolição do Estatuto do Indigenato e sustentando a necessidade de integração dos negros e brancos em Moçambique.
O bispo e os missionários
O primeiro bispo da Beira contestava o Poder através das pastorais escritas a partir de factos reais, e era para obter as informações objectivas que ele se apoiava nos missionários da sua diocese. Em vez de tentar esconder ou iludir factos inconvenientes, ele apresentava-os às autoridades ou denunciava-os através dos seus escritos, normalmente no Diário de Moçambique, o jornal da diocese, que era, tal como os outros, submetido à censura.
As missões e os missionários passaram a ser para ele uma fonte privilegiada de conhecimento e de acção e a ter nele um apoio para as suas actividades. Não era este papel contestatário que o regime esperava da Igreja Católica, nem das suas missões.
As missões católicas: instituições de utilidade imperial
A partir do momento em que as relações entre a Santa Sé e o Estado português se normalizaram através da assinatura da Concordata e do Acordo Missionário em 7 de Maio de 1940 e da publicação do Estatuto Missionário a 5 de Abril de 1941, a acção missionária da Igreja Católica conheceu um importante desenvolvimento, pois o Estado português garantia-lhe o livre exercício da sua autoridade na esfera da sua competência.
As missões católicas passaram a ser consideradas instituições de utilidade imperial e sentido eminentemente civilizador, ficaram com liberdade de expansão para exercerem formas de actividade que lhes eram próprias, nomeadamente para fundar e dirigir escolas, e os missionários, não sendo funcionários do Estado, eram considerados “como pessoal em serviço especial de utilidade nacional e civilizadora, que deviam consagrar-se exclusivamente à difusão da fé católica e à civilização da população indígena”.
Em princípio, os missionários deveriam ser portugueses, podendo, no entanto, os ordinários das dioceses recorrer a missionários ou missionárias de outras nacionalidades em caso de necessidade e para suprir faltas. Estavam no entanto sujeitos a serem chamados pelo bispo com prévio acordo entre a Santa Sé e o Governo português, e ficarem integrados em missões da organização missionária portuguesa. Além disso deveriam declarar expressamente a renúncia às leis e tribunais da respectiva nacionalidade, submetendo-se aos equivalentes portugueses.
Era ainda o Governo metropolitano português que financiava os institutos missionários e era dos orçamentos das respectivas colónias que saíam os subsídios para as dioceses e circunscrições missionárias. O Governo concedia gratuitamente às missões terreno para o seu desenvolvimento, concedia isenção de impostos ou contribuições aos bens das dioceses, circunscrições missionárias, institutos e outras instituições eclesiásticas.
A ruptura
Esta relação era muito vantajosa para a Igreja Católica e também para o Governo, mas, após o Concílio Vaticano II e durante a guerra, alguns dos seus bispos e padres procuraram descomprometer-se da identificação da sua igreja com o “Poder Colonial” e actuaram por vezes muito agressivamente contra o Estado português.
A contestação ao “Poder Colonial” e à guerra centrou-se no bispo da Beira, D. Sebastião Soares Resende, e, mais tarde, em D. Manuel Vieira Pinto, bispo de Nampula, e em algumas congregações religiosas, como a dos Padres Brancos.
As missões católicas portuguesas sujeitas a um regime de padroado
As missões católicas em África dependiam da Congregação Propaganda Fidei, mas nos territórios portugueses em África estavam sujeitas a um regime de padroado. Todas eram portuguesas e dependentes exclusivamente do bispo da diocese, podiam, no entanto, pertencer ao arciprestado de uma ordem religiosa estrangeira em que os padres, na sua maioria ou totalidade, não eram portugueses.
Após a assinatura da Concordata e do Acordo Missionário, o enquadramento canónico fazia-as depender da Secretaria de Estado do Vaticano, através da Nunciatura Apostólica em Lisboa. Esta situação nem sempre foi compreendida por alguns missionários estrangeiros que sentiram dificuldade em se adaptarem e aceitarem as normas concordatárias estabelecidas entre a Santa Sé e a República Portuguesa.
As missões e a guerra: uma nova atitude da igreja
As missões católicas, assim como as populações, estavam por vezes entre fogo cruzados – de um lado as autoridades portuguesas, do outro a FRELIMO. Em algumas áreas eram visitadas pela guerrilha, que obtinha apoio em alimentação, roupas e medicamentos e até informações. O facto de algumas missões fornecerem apoio aos guerrilheiros era considerado pelo Poder português como uma atitude de colaboracionismo com o inimigo, uma situação que criou problemas de relacionamento entre a Igreja e as autoridades e que tinha por fundo a discussão do papel da Igreja no mundo moderno, encetada com Concílio Vaticano II, e no caso de Moçambique, no seguimento das reflexões de D. Sebastião Soares Resende.
A guerra forçou a Igreja a um marcar de posição política e os reveses sofridos por esta (como a prisão ou expulsão de algumas ordens e missionários) acabaram também por produzir benefícios para a luta pela independência.
D. Ernesto Gonçalves Costa, antigo bispo de Inhambane, resume a situação da Igreja Católica em Moçambique durante a guerra dizendo: “Os bispos de Moçambique estavam sujeitos a várias formas de pressão, resultante não só de grupos de missionários que desejavam uma Igreja mais desvinculada do poder temporal, ao qual se ligava pela Concordata e pelo Acordo Missionário, mas ainda pela força censória e política que vigorava em Moçambique onde persistia uma guerra em que as pessoas de bom senso, mesmo alguns chefes militares, não acreditavam e para a qual não esperavam uma solução por meio das armas, mas através do diálogo entre
as partes e conversações políticas”.
As missões e os militares
As Forças Armadas Portuguesas tinham o seu próprio entendimento do papel desempenhado pela Igreja Católica durante a guerra e o Relatório Suplementar de Informações (Supintrep) “Panorama Religioso de Moçambique”, embora extremamente cauteloso no tratamento do assunto, alertando para a necessidade de evitar generalizações em que “lamentavelmente, caem alguns relatórios sobre o procedimento francamente hostil dos sacerdotes católicos nas áreas subvertidas” e reconhecendo que a maioria dos missionários católicos possuía um elevado sentido de servir e as suas actividades estavam ao abrigo de qualquer suspeita, salientava a diferença de atitude dos missionários portugueses da de alguns estrangeiros.
As atitudes desfavoráveis destes últimos eram interpretadas como uma continuação das posturas políticas dos seus países de origem e era-lhes atribuída a preocupação de “descomprometer” a Igreja das suas ligações com o “colonialismo”. Assim, assumiam com frequência atitudes consideradas hostis à soberania portuguesa, encobrindo actividades de carácter subversivo e, por vezes, colaborando directamente com elas.
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