Planos de acção psicológica
As Forças Armadas Portuguesas, em especial o Exército, elaboravam planos de acção psicológica periódicos, do mais alto escalão até ao nível de Companhia. As acções previstas dirigiam-se aos próprios militares, ao inimigo e especialmente às populações, dividindo-se estas de acordo com a sua situação, referindo-se especificamente os casos de populações sob controlo das autoridades nacionais ou sob controlo do inimigo.
Populações controladas pelo inimigo: a APsic a partir da definição dos campos do Bem e do Mal
A forma como as autoridades militares portuguesas designavam as populações que viviam nas zonas libertadas (populações controladas pelo In) é, só por si, a demonstração de como as consideravam – uma massa, um rebanho que um In, ser alienígena e dotado de poderes diabólicos, dominava e conduzia. Esta abordagem religiosa, assente na separação de campos entre o Bem e o Mal, era totalmente inadequada para conquistar as “mentes” e os “corações” daqueles que, neste caso, pertenciam ao mundo dos guerrilheiros, o dito In, e reflecte o modo como os europeus viam os povos que conquistaram ou dominaram: um grupo que deve, pode, ou tem de ser convertido para ser controlado.
É a visão dos antigos missionários que chegavam a um mundo estranho. Não é a visão daquele que faz parte dele, como é o caso das populações e dos guerrilheiros.
A população é a água e o guerrilheiro o peixe: uma verdade inaplicável
A frase de Mao Tse Tung e a ideia da população estar para o guerrilheiro como a água para o peixe surgiu num dado contexto, e pode não ser exportável para outros ambientes, especialmente se se tratar de um Exército ocupante originário de outro espaço civilizacional.
O contexto em que a frase pode ter alguma correspondência com a realidade é o da luta revolucionária em termos marxistas, da relação dos guerrilheiros, tidos como representantes de uma vanguarda ideológica, com as “massas” que ainda não tomaram consciência da sua exploração. Neste contexto, os guerrilheiros devem tentar ser como a população, não a violentar, viver como ela. O aproveitamento da frase e do conceito por forças militares ocupantes de um dado território, como a que decorre de uma guerra colonial, e a sua transformação em ideia chave para os programas de acção psicológica destinados a conquistar populações indígenas e a separá-las dos guerrilheiros, foi e é um erro de perspectiva.
A frase é boa, mas se for entendida como a base de manobra de um Exército para separar as populações dos guerrilheiros, como quem tira a água ao peixe, não tem aplicação, embora se tenha tornado uma verdade indiscutível para os militares especialistas de acção psicológica e lhes tenha servido para gastar toneladas de panfletos lançados sobre matas impenetráveis para convencerem gente que sempre viveu no desconhecimento dos europeus, ou a fugir do seu contacto, para gastar horas de rádio em programas que poucos ouviam e menos levavam em conta, mas não separou, nem podia separar, populações e guerrilheiros pertencentes às mesmas famílias e unidos pelos laços de pertença ao mesmo grupo, à mesma tribo, ao mesmo clã, pois, em princípio, são as populações que geram os guerrilheiros, são a água que gera o peixe e os elementos estranhos são os militares ocupantes. Considerar a população a água e o guerrilheiro o peixe, separar estas duas entidades como fizeram os militares portugueses, foi a causa da surpresa que sentiram ao tomarem conhecimento de factos como os que ocorreram bastantes vezes de os membros da povoação ao lado do seu quartel, do chefe das milícias da aldeia, do guia, do régulo, pertencerem às redes clandestinas dos movimentos de libertação.
Uma frase feita
A imagem da água e do peixe para caracterizar a relação das populações com os guerrilheiros é apenas uma frase feita. De facto, em nenhuma guerra colonial os exércitos ocupantes conseguiram separar as populações dos guerrilheiros e não foi por não terem tentado todas as técnicas possíveis através de deportações, da prisão nas aldeias estratégicas, da eliminação selectiva de dirigentes, ou em massa, da acentuação de clivagens e divergências étnicas entre grupos, do aliciamento com programas de desenvolvimento e bem-estar, mas porque a relação entre a população e os guerrilheiros não é a do meio orgânico com o ser vivo que se sustenta dele, pois ambos pertencem à mesma realidade, e são, por isso, inseparáveis.
Subversão: uma tomada de consciência política
Aquilo que as autoridades coloniais classificavam como subversão era nada mais nada menos do que um processo de tomada de consciência política num ambiente complexo. Essa tomada de consciência dos povos sofreu de contradições de vária ordem, processou-se a diferentes velocidades, mas não era, nem podia ser, a acção psicológica, a APsic, com os seus ingénuos cartazes e palavras de ordem, os seus programas de rádio, que podia substituir as contradições políticas internas entre africanos, pelo antagonismo inultrapassável da situação colonial.
Política e psicologia
Percebe-se que, no tempo da guerra, os militares portugueses e o regime tenham classificado e pretendido tratar uma questão tão eminentemente política como a soberania, a organização da vida colectiva e individual, como um problema psicológico – tratava-se de um regime que considerava que só os cidadãos psicologicamente afectados e descontrolados não apoiavam a política do Governo. Mas essa deformação teve como consequência levar os militares a dedicarem grandes esforços a acções completamente inúteis do ponto de vista da acção política, embora o auxílio a pessoas tão necessitadas como eram em geral as populações africanas tenha sido uma actividade estimulante e reconfortante no plano individual.
A APsic do Governo e a dos militares: dois universos, duas preocupações
Os políticos do Governo em Lisboa e os responsáveis militares mais esclarecidos nunca acreditaram na APsic dirigida às populações. Câmara Pina, o chefe de Estado-Maior do Exército, logo em 1965 contrariou a proposta feita pelos militares de Angola de criação de Secções de Acção Psicológica nos quartéis-generais, com o eterno argumento da falta de pessoal e, na análise das directivas de acção psicológica do Governo e dos comandos militares revelam-se com clareza as diferenças de abordagem dos políticos e dos militares quanto aos objectivos e aos alvos da acção psicológica. Essas diferenças são notórias e claras, por exemplo, em dois documentos: o “Plano de Manobra Psicológica de Angola em 1970”, da 5ª Repartição do Comando-Chefe de Angola, e a “Directiva Nacional – Acção Psicológica 1973”, difundida a 15 de Novembro de 1972 pela Presidência do Conselho de Ministros.
As populações africanas e os militares
A manobra do Plano militar baseava-se numa carta de situação psicológica e do estudo exaustivo da população de Angola, orientava a sua manobra para as respostas a dar às motivações negativas da população e do inimigo e fixava os meios disponíveis e adequados para a “formação duma opinião esclarecida, ou a transmissão de determinadas ideias da Doutrina Nacional (fundamentalmente a concepção social cristã da sociedade portuguesa) por forma a atingirem-se os objectivos psicológicos atrás indicados…”
Pelo seu lado, a Directiva Nacional quase nem se referia às populações africanas – a não ser para mandar manter actualizado o estudo das sociedades ultramarinas, um estudo antropológico.
O Governo e o inimigo: as oposições metropolitanas
A directiva centrava-se na análise do inimigo e dos seus objectivos. Inimigo eram os partidos e as organizações políticas da Oposição em Portugal. A lista do inimigo incluía o Movimento da Oposição Democrática, a Acção Democrática Social, até os liberais sem filiação partidária e a Liga Popular Monárquica, mas o seu inimigo número um era o Partido Comunista, a quem era dedicada a maior parte do estudo. A intenção de derrubar o regime era o primeiro objectivo destes inimigos. A directiva definia em seguida os grandes objectivos nacionais e fixava as acções de propaganda, de contrapropaganda, os estribilhos nacionais para 1973: “Quatro continentes, um ideal multicultural”, “Só Portugal”, “Progresso em Paz”, “Estudar Trabalhar”, “Progredir a Par”, entre outros. Como se vê, as populações africanas, que tanta atenção mereciam aos militares da APsic nos quartéis-generais de Angola, Guiné e Moçambique, eram a menor das preocupações dos políticos de Lisboa. Para os políticos, o problema era a sobrevivência do regime e deles próprios, e o teatro de operações situava-se na Europa e não se resolvia com panfletos em macua e programas de rádio em quioco. Para o Governo de Lisboa, a APsic sobre as populações indígenas era uma actividade irrelevante, mas de que os militares em África gostavam, porque lhes dava uma sensação de bem-estar e à qual dedicavam grande interesse. Era um paliativo barato. Se, com a APsic, os militares conseguissem evitar o alastramento da guerra, tanto melhor.
Os grupos-alvo para o Governo
O que preocupava o Governo era o estado de espírito das populações metropolitanas, dos seus vários grupos. Entre eles, os principais eram a “Juventude/Estudantes”, as “Forças Armadas” e os “Trabalhadores”.
Desenvolvimento económico e acção psicológica: propaganda e auto-justificação
As obras públicas realizadas nos territórios coloniais, os serviços de saúde e educação, o acréscimo de produção de matérias-primas, a expansão dos bancos e o aumento das trocas comerciais foram muitas vezes apresentados pelas autoridades portuguesas como exemplos de acções psicossociais.
É uma realidade que, durante os anos da guerra, existiu desenvolvimento económico nas colónias, principalmente em Angola e Moçambique, e que houve um aumento da riqueza e do bem-estar nos territórios. Essas melhorias duma situação que era do antecedente de muito baixo nível foram apresentadas como prova da bondade do colonialismo português, como a boa consequência da guerra e como razão para a eternização do domínio colonial. Os quilómetros de estradas, as centenas de pistas de aviação, os postos sanitários e as enfermarias, as escolas e universidades construídas a partir de 1961, justificavam o abandono ou a exploração dos decénios anteriores e davam direito a novo ciclo.
Fazia também parte da propaganda do regime, considerar que os africanos deviam estar agradecidos aos portugueses por estas benesses. Este tipo de argumentos, traduzidos em acções de propaganda, partiam da ideia de que gente vinda de longe se sujeitava aos maiores sacrifícios para construir estradas alcatroadas, pontes de betão, barragens para produzir energia eléctrica, fábricas de cerveja, de conservas, de papel, explorar petróleo, ferro e diamantes, transportar grávidas de avião, vacinar doentes, distribuir comprimidos para o paludismo, apenas para agradar aos negros angolanos, guineenses e moçambicanos e para lhes demonstrar que ser português era melhor que ser independente. Como o desenvolvimento económico não era nem caridoso nem desinteressado, as estradas alcatroadas e as pontes não se destinavam aos negros, que não tinham automóvel, as barragens não produziam energia para quem não tinha frigorífico, nem candeeiro, antes cozinhava a lenha e bebia água dos rios, como as escolas e as universidades não formavam os jovens analfabetos (mais de 90%), a “psico” do desenvolvimento era propaganda para consumo interno – para as classes médias brancas e negras que o podiam aproveitar e que não necessitavam de ser convencidas. A “psico” apoiada na propaganda do desenvolvimento era especialmente dirigida aos militares metropolitanos, que assim e através dela se sentiam recompensados pelo esforço e sacrifícios e assim viam justificadas as suas comissões – tinham contribuído para o desenvolvimento de Angola, ou de Moçambique.
Com a excepção da Guiné, onde não havia desenvolvimento que escondesse a realidade, esta propaganda demonstrou ser eficaz e ainda hoje se mantém em muitas análises.
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