Numa apresentação televisiva em 19 de Março de 1971, o general Kaúlza de Arriaga informou como decorriam as operações em Moçambique. A presença de Kaúlza de Arriaga teve grande impacto na opinião pública, dado ter sido a primeira vez que um general comandante-chefe de um teatro de operações surgia na televisão a apresentar uma carta de situação militar.
Kaúlza de Arriaga, apesar de referir alguns condicionamentos em tom optimista, anunciou a vitória quase certa da guerra em Moçambique, transparecendo para o povo a imagem de uma paz próxima.
A manobra de Kaúlza de Arriaga
Entre os generais que exerceram o cargo de comandante-chefe nos três teatros de operações nenhum rodeou de tanta expectativa o início das suas funções, nem deu depois tantas explicações para ilustrar os resultados da sua acção, quanto o general Kaúlza de Arriaga a propósito da sua comissão em Moçambique.
Nos anos setenta, já os generais portugueses com anterior experiência de comando haviam ganho a prudência suficiente para se resguardarem do anúncio de soluções que sabiam não se encontrarem na acção militar. Evitavam também a proclamação de vitórias numa guerra em que a acção militar era apenas uma parte.
Objectivo – vitória militar
O elemento mais característico da “solução” Kaúlza de Arriaga é a surpreendente proposta de vitória militar numa guerra de contraguerrilha. Os motivos que o levaram a estabelecê-la, contrariando a experiência alheia e até o senso comum, assentam na sua concepção bipolar e maniqueísta do mundo e dos homens. Para ele, os conflitos do pós-guerra não eram mais que batalhas contra o expansionismo comunista. A sua acção tem subjacente uma ideia de cruzada, de combate do bem contra o mal, pelo que não podia admitir outro resultado que não fosse a vitória sem compromissos. O comando de Kaúlza de Arriaga será assim o mais assumido e radicalmente ideológico de entre o de todos os chefes militares com responsabilidades de condução da guerra mas, à semelhança do que foi a prática do regime e de Salazar, ele será também a que menos considerou a componente política e o envolvimento das populações, quer das negras, quer das de origem europeia, na definição dos seus destinos.
Às primeiras, considerou-as sujeitos passivos da acção civilizadora – ele era intrinsecamente racista – e, às segundas, uma base de apoio acrítica a quem competia trabalhar e deixar-se conduzir – ele era eminentemente elitista e autocrata.
Era a atitude menos adequada à complexidade social de Moçambique, que exigia cuidados particulares de relacionamento e que o responsável pela condução da guerra optasse por ser mais raposa e menos leão.
Relações com as autoridades administrativas
Mal acabou de tomar posse, rompeu por completo com a forma de actuar do experiente general António Augusto dos Santos, a quem sucedeu como comandante-chefe, e do general Costa Gomes, que substituiu como comandante das forças terrestres, que haviam desenvolvido a manobra das suas forças colocando-as junto às populações e sobre os eixos de infiltração, tinham evitado grandes operações e, através de soluções concertadas com os outros responsáveis da administração, tinham mantido a acção da guerrilha limitada no Niassa e, em Cabo Delgado, a norte do rio Messalo e na serra do Mapé.
Kaúlza de Arriaga, pelo contrário, desenvolverá relações crispadas com as autoridades com as quais devia cooperar na implantação das medidas de conquista e controlo das populações e tomará a iniciativa de atacar sem perda de tempo a FRELIMO nos seus redutos do planalto dos Macondes. Esta sua ansiedade em precipitar os acontecimentos para obter uma decisão rápida era conhecida e preocupou Baltazar Rebelo de Sousa, o governador-geral, que teve o cuidado de acompanhar de perto a administração do território, incluindo frequentes visitas às populações das zonas de guerra no Norte, enquanto permaneceu no seu cargo.
Com o governador seguinte, o engenheiro Arantes e Oliveira, antigo oficial de Engenharia, tal como Kaúlza de Arriaga, e seu antigo colega nos governos de Salazar, as relações deterioram-se até ao limite de, nas palavras do general, terem surgido “antagonismos e conflitos que se expressaram em agressivas e desagradáveis confrontações nas reuniões do Conselho de Defesa Provincial”. A situação tornou-se insustentável e essas reuniões deixaram de se realizar durante alguns meses.
Kaúlza de Arriaga teve melhores relações com o último governador de Moçambique, o engenheiro Pimentel dos Santos, um inspector do Ministério do Ultramar, mas no terreno subsistiram conflitos entre militares e civis, o que foi nítido na política de aldeamentos na zona Centro e em Tete.
O sistema de informações – reflexos na “manobra das populações”
Num outro aspecto fundamental na contraguerrilha, as informações, também foram difíceis as relações entre os militares e a PIDE/DGS. O mau relacionamento já vinha do anterior e era provocado pelos múltiplos poderes que se cruzavam em Moçambique, uns de origem interna, como o do engenheiro Jorge Jardim, outros de origem externa, provenientes de serviços secretos dos países vizinhos ou de personalidades obscuras como as de Tiny Rowland, dono da empresa Lhonro, que geria o oleoduto da Beira para a Rodésia.
O resultado das reticências à cooperação por conflito de personalidades, de competências, dos conceitos ou dos interesses dos vários intervenientes, foi o de terem sido irrelevantes os resultados da chamada “manobra das populações” no exercício do comando de Kaúlza de Arriaga, independentemente das responsabilidades que cabem aos vários protagonistas.
A debilidade de que se revestiu em Moçambique a acção nesta componente essencial na contraguerrilha veio a estar na raiz dos graves problemas que as forças portuguesas defrontaram na zona de Tete, onde a FRELIMO expandiu a sua acção política e militar sem que as autoridades e os militares portugueses a tenham conseguido controlar, porque não souberam antecipar-se a ela.
Também no Norte, de uma forma geral, se manteve a separação das populações e das forças portuguesas que vinha desde o início da guerra.
Cabo Delgado ou Tete?
Na condução da manobra militar directa, Kaúlza de Arriaga alterou radicalmente a situação existente no terreno, passando as forças portuguesas da gestão do tempo a seu favor através de patrulhamentos e nomadizações para os grandes confrontos.
A Operação Nó Górdio visava destruir a FRELIMO e o seu coração, que ele determinou situar-se em Cabo Delgado, mas a realidade era que, após a decisão do Governo de construir a barragem de Cahora Bassa, o coração da FRELIMO podia continuar em Cabo Delgado, mas a decisão da guerra passara para Tete.
Quando Kaúlza de Arriaga foi confrontado com o agravamento da situação de Tete teve de alterar os seus planos de vitória a partir da conquista do Norte e enviar as primeiras unidades de intervenção para fazer face às ameaças da FRELIMO contra a grande barragem de Cahora Bassa.
A partir de então, a prioridade foi dada à frente de Tete, mas tinha sido perdido demasiado tempo, que a FRELIMO aproveitou para infiltrar os seus guerrilheiros a partir da Zâmbia, pelo vale do rio Capoche, ficando em condições de passar à acção militar na sequência do profundo trabalho realizado de doutrinação política e de organização das bases de apoio.
Em 1971, muito antes do enchimento da albufeira da barragem, já unidades de guerrilha dispunham de bases na margem direita do rio Zambeze e forças portuguesas apoiadas por helicópteros e pisteiros rodesianos perseguiam guerrilheiros a sul de Chicoa e de Estima.
Até ao final do seu mandato, Tete e Cahora Bassa serão o nó górdio de Kaúlza de Arriaga. Entretanto a FRELIMO continuava a manter a sua actividade quer no Niassa, onde ensaiou formas de administração civil típicas de zonas libertadas, quer em Cabo Delgado, onde continuou a avançar para sul, ultrapassando sucessivamente a linha do rio Messalo e a do rio Montepuez, até chegar à estrada Porto Amélia-Montepuez, aproveitando o facto de as tropas portuguesas estarem concentradas junto ao rio Rovuma, a tentar impedir os guerrilheiros de penetrar em território moçambicano construindo uma barreira de arame na Operação Fronteira.
Esta expansão da actividade da FRELIMO, tanto em Cabo Delgado como em Tete, mereceu uma apreciação contundente de Silva Cunha, ministro do Ultramar e da Defesa, que comparou os resultados da Operação Nó Gordio aos que se obteriam atirando uma pedra a um vespeiro.
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