Primórdios
Apesar de já em 1960 terem ocorrido acções anticoloniais na Guiné-Bissau, com ataques no Norte a S. Domingos e Varela conduzidos por incipientes grupos do Movimento de Libertação da Guiné (MLG) de François Mendy, 1963 é o ano do início das acções militares do PAIGC.
As primeiras acções ocorreram em Janeiro de 1963, com o ataque dos guerrilheiros à guarnição militar de Tite, a sul de Bissau e com as primeiras emboscadas na região de Bedanda, mais a sul.
Até 1963 o PAIGC e Amílcar Cabral ainda pareceram acreditar que as Nações Unidas estavam em condições de obter por parte de Portugal o respeito pelas suas obrigações internacionais e de assegurarem pacificamente o respeito pelo direito à autodeterminação aos povos da Guiné Portuguesa e das ilhas de Cabo Verde.
O ataque a Tite significa que haviam terminado as ilusões quanto à possibilidade de um diálogo construtivo com o regime português de Salazar. Para o PAIGC a luta armada surgia como uma imposição, não só pela obstinação com que Portugal recusou a emancipação pacífica dos seus povos ultramarinos, mas também pela repressão de qualquer reivindicação nacionalista, numa atitude contrária às suas obrigações de Estado membro das Nações Unidas e pela incapacidade destas em conseguirem de Portugal o respeito das suas obrigações internacionais.
Guiné – Uma história de desinteresse
A Guiné situa-se na costa ocidental de África, entre o Senegal, a norte, e a República da Guiné, a sul, e ocupa uma superfície de 36.125 km2. Descontando a vasta área que é periodicamente coberta pelas marés e que se encontra revestida por mangais e “tarrafo”, a área emersa é de cerca de 28 000 km2.
A cronologia da história da Guiné é elucidativa do desinteresse de Portugal pelo território que mereceu a mais dura das guerras coloniais:
1446 – Descoberta por Nuno Tristão
1588 – Cacheu povoado por Cabo Verde
1614 – Início da administração do Cacheu, sujeita a Cabo Verde
1640 – Capitania de Cacheu
1624-1630 – Ocupação holandesa
1687 – Povoamento de Bissau por portugueses, sujeita à administração do Cacheu
1696 – Capitania de Bissau
1707-1753 – Bissau ficou abandonada
1753 – Bissau passa a ser uma colónia sujeita a Cabo Verde
1792 – Colónia inglesa, dependente de Bolama
1879 – União de Bissau ao Cacheu como colónias portuguesas e separadas de Cabo Verde
1951, Junho, 11 – Província Ultramarina da Guiné.
As fronteiras com os países vizinhos são convencionais, sem obstáculos naturais e resultam da Convenção Luso-Francesa de 1905. Só entre 1929 e 1933 foram efectuadas as delimitações, com a colocação dos marcos fronteiriços.
Mau clima e terras inóspitas
A vegetação na zona litoral e nas margens dos rios é muito cerrada, enquanto na zona interior é constituída por savana. O clima é muito quente e húmido nas zonas costeiras e seco e quente, sub-sahariano, no interior.
O calor, associado ao vento leste, torna a atmosfera “irrespirável”, com temperaturas de 35º a 40º à sombra e o regime de monções provoca “tornados”, no início e no fim das estações.
População heterogénea
Em 1960 a população era constituída por 520 000 habitantes, dos quais apenas 2.500 europeus e cerca de 5000 mestiços. Os restantes distribuíam-se por 17 tribos ou grupos de linguagem diferenciados, divididos em três grandes conjuntos: os nómadas e islâmicos fulas, no Norte e Nordeste, os mandingas no Centro-Norte, e um grupo heterogéneo por vezes classificado como de sena-gambiano, no qual se podem incluir os grupos de “recalcados subguineenses”, povos sujeitos por invasores ao longo da história, como os felupes, os bijagós, os nalus. Quinhentos anos após a descoberta, a cultura ocidental tinha causado pouco impacto nesta gente, 58% eram animistas, 38% muçulmanos e apenas 4% se diziam católicos.
Poucas ou nenhumas riquezas
A Guiné apresentava dificuldades de desenvolvimento derivadas do clima, da natureza do terreno e da sua dimensão. A economia assentava na agricultura de subsistência e só em reduzida escala os produtos eram comercializados.
Daí o baixo índice de monetarização. A estrutura do comércio externo reflectia o carácter rudimentar da economia: as exportações eram quase todas constituídas por produtos agrícolas, com relevo para o amendoim e o coconote, que representavam 85% do total, além de madeiras e peixe, tudo controlado pela Casa Gouveia, da CUF, que também era responsável pelas importações dos produtos manufacturados, pelo que eram crónicos e avultados os défices da balança comercial, simétricos aos lucros da Casa Gouveia e da CUF.
Excepto para a CUF
Excepto para a CUF, a Guiné não era, manifestamente, um território atractivo sob nenhum ponto de vista: mau clima, pouca terra arável (apenas 8% do território), ausência de matérias-primas, população pobre e conflituosa entre si, localização sem interesse estratégico, maus portos, poucas estradas.
O pouco interesse deste território era histórico, tanto assim que fora governado a partir de Cabo Verde e os funcionários coloniais eram na sua maioria cabo-verdianos.
Porquê a guerra pela Guiné?
Perante este quadro, a pergunta mais difícil de responder é: o que terá levado Amílcar Cabral e o PAIGC a lutar tão encarniçadamente pela independência da Guiné e Salazar e o seu Governo a querer manter este território inóspito a todo o custo? Isto é, o que terão visto nesta terra estes dois homens para nela fazerem morrer?
As razões de Amílcar Cabral
A Guiné era demasiado pequena para o grande homem que Amílcar Cabral foi, mas ele não dispunha de outra base onde alicerçar a sua luta por aquilo em que acreditava: o fim do colonialismo, a transformação do homem africano, a sua libertação ao fim de séculos de subjugação.
Por ser a Guiné demasiado pequena para Amílcar Cabral é que ele se desdobrou em actividades internacionais e de solidariedade com outros povos africanos. Ele foi fundador da FRAIN, antecessora da Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP), participou na fundação do MPLA, percorreu o mundo a fazer conferências e a angariar apoios para a causa do anticolonialismo.
As atitudes políticas de Cabral revelam que ele tinha uma clara noção da dificuldade de fazer da Guiné uma terra que sustentasse com dignidade os seus filhos. Para garantir a viabilidade da Guiné, engendrou a aliança de Estados com Cabo Verde, que possuía uma posição estratégica invejável. Infelizmente, os guinéus pensaram que a aliança era favorável a Cabo Verde, por lhe dar acesso ao interior de África, ao deserto, esqueceram-se de considerar a vantagem mútua. Mas Cabral também tentou até à última evitar a guerra, escreveu cartas a Salazar a propor conversações e soluções pacíficas. Pensou que Salazar saberia fazer contas: uma independência negociada evitaria os custos de uma guerra e o dinheiro poupado serviria para dividir entre o Governo português e o futuro Governo da Guiné o défice que aquela pobre terra sempre teria nas suas contas.
Em Fevereiro de 1960 publicou em Londres um texto sobre as colónias portuguesas, em Outubro apresentou uma carta aberta reclamando a solução pacífica do problema da Guiné e Cabo Verde, em Junho de 1962 foi à ONU apresentar um relatório, em Março de 1963, já depois de iniciada a guerra, Cabral declarou em Paris estar disposto a suspender a luta se Portugal quisesse solucionar pacificamente o problema colonial.
Tudo sem resposta.
A insensatez de Salazar – a inflexibilidade em nome de estranhos princípios
O que terá levado Salazar e os ministros do seu Governo a ir para a guerra?
Não foi a riqueza, nem a posição estratégica, nem o relevo internacional do território.
A resposta mais comum tem sido a defesa do sagrado princípio da integridade do território, mas a integridade do território nacional, com a inclusão nele das colónias, tinha sido estabelecida por Salazar há poucos anos no Acto Colonial e não era nem sequer um dogma de fé do regime. A defesa contra o comunismo também não parece admissível – quem mais pressionava a independência eram os Estados Unidos. Acresce que o Senegal, mesmo ao lado, não era comunista; Conacri não era uma base da URSS, apesar das facilidades concedidas. Às populações não era solicitada a participação nas decisões políticas.
A guerra: aparentemente uma decisão estúpida
Mesmo para o camponês que Salazar gostava de dizer que tinha dentro de si, a decisão de lutar para manter a Guiné é estúpida. Nenhum camponês luta para manter uma terra que só lhe dá prejuízo e ralações, ainda para mais quando aquele que está disposto a lutar por ela está também disposto a ficar com ela.
Além do mais e em termos práticos, muito pouca coisa se alteraria com a independência da Guiné se ela fosse concedida a Cabral e as previsíveis alterações seriam para melhor.
Os cabo-verdianos continuariam a ser o grupo dominante na administração. Já eram com os portugueses e, se as etnias locais reagissem contra o poder dos cabo-verdianos, o problema passaria a ser agora uma questão exterior a Portugal. Mesmo em caso de instabilidade interna, não caberia a Portugal resolvê-la, mas ajudar a resolvê-la, o que lhe dava maior liberdade de acção. Como, por outro lado, as importações da Guiné não eram vitais para a economia portuguesa, as disputas internas não afectavam a economia nacional.
Mas a verdade é que à volta de Salazar, entre os seus ministros, o da Defesa, o da Economia, o das Finanças, o do Ultramar não foi possível encontrar um só homem sensato e avisado que tivesse feito esta contabilidade e questionasse o ditador sobre se a Guiné valia a guerra que se preparava.
Aspecto de um porto no interior da Guiné. [AHM]
A guerra da CUF
Nesta fase da decisão, a guerra só poderia interessar à CUF e Salazar opta mais uma vez pela defesa dos interesses dos grandes grupos. Já tinha decidido a favor deles em Angola quando da demissão de Adriano Moreira, mais tarde Silvino Silvério Marques acusará os grandes interesses de Angola de terem manobrado junto de Salazar para ele não continuar como governador e referirá mesmo o nome do comandante Ernesto Vilhena, o todo-poderoso administrador-delegado da Diamang.
A teoria do dominó
A opção pela guerra deve ser, contudo, atribuída ao receio do efeito de dominó, que faria com que, quebrado com a Guiné o “princípio” da recusa da independência das “províncias ultramarinas”, deixaria de ser possível defender a recusa de a conceder às jóias da coroa: Angola e Moçambique, aí sim, afrontando os grandes.
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