A BÍBLIA
Da guerra convencional à guerra de guerrilhas
A guerra em que as Forças Armadas Portuguesas tiveram de se empenhar a partir de 1961 em África obrigou-as e obrigou o Governo a alterar radicalmente os seus conceitos estratégicos e tácticos.
Em termos estratégicos, o conceito de defesa passou a considerar África como objectivo a preservar. A preservação dos territórios de África passou a ser o objectivo da Defesa Nacional.
Em termos tácticos, as Forças Armadas, em especial o Exército e a Força Aérea, tiveram de alterar os seus conceitos de emprego em ambiente de guerra convencional para o conceito de guerra de contraguerrilha e contra-subversão.
Defesa Nacional: uma rotina
Até 1950, a administração dos assuntos relacionados com a defesa nacional era coordenada através de procedimentos de rotina dos departamentos governamentais. Não existia nenhum organismo específico de supervisão e planificação da estrutura e do emprego das Forças Armadas.
A partir de 1950, a coordenação da actividade operacional das Forças Armadas foi atribuída a um chefe de estado-maior general e aos comandantes-chefes quando existissem. O comando das forças pertencia ao ministro do Ramo – Exército, Marinha e subsecretário de Estado da Aeronáutica.
Comandantes que não comandam
Tal como ainda hoje, o chefe de estado-maior general não era o comandante das Forças Armadas, apenas um coordenador. Tal como os comandantes- chefes nos teatros de operações. Situação que apenas mudou nos anos 1968-69, mais por força das personalidades dos generais envolvidos do que por determinação política, com as nomeações de Spínola, Costa Gomes e Kaúlza de Arriaga para comandantes-chefes da Guiné, Angola e Moçambique, respectivamente.
Doutrina autónoma
A doutrina de emprego das forças era desenvolvida autonomamente por cada estado-maior e pelos quartéis-generais de cada colónia.
A entrada de Portugal na NATO obrigou as Forças Armadas portuguesas a seguirem a doutrina daquela organização, mas apenas para as unidades que lhe estavam afectas, em ambiente de guerra convencional e num cenário europeu.
Estes conhecimentos não se aplicavam à teoria de emprego em África e à contra-subversão.
Doutrina de contra-subversão: cada Ramo tinha a sua
A doutrina foi desenvolvida por cada um dos estados-maiores de cada um dos Ramos – Exército, Marinha e Força Aérea, e promulgada por cada um dos seus chefes.
Nunca existiu um regulamento com princípios comuns, nem para operações conjuntas.
O regulamento em cinco volumes “O Exército na Guerra Subversiva” era o mais completo manual sobre o emprego de forças militares em ambiente de contra-subversão e de contraguerrilha. Como o nome indicava, tratava-se de um regulamento para uso do Exército, promulgado pelo respectivo ministro.
“O Exército na Guerra Subversiva”: uma obra notável
Os cinco volumes de “O Exército na Guerra Subversiva” foram a Bíblia pela qual se regeram os militares do Exército durante a guerra, mas não obrigava a Marinha, nem a Força Aérea a segui-lo.
Esta obra resulta das experiências de um reduzido grupo de militares que frequentaram cursos e estágios no estrangeiro e que adaptaram os conhecimentos à realidade portuguesa quando regressaram.
Em 1958 e 1959, os capitães Pedro Cardoso e Marques Pinto frequentaram em Inglaterra cursos de informações na School of Military Intelligence e trouxeram os conhecimentos sobre as guerras subversivas da Malásia, do Quénia e de Chipre.
Em 1959 foi enviada à Argélia uma missão de seis oficiais chefiados pelo major Franco Pinheiro e que estagiaram no Centre d’Instruction de Pacification et Contre-guerrill, em Arzew-Oran.No seu regresso a Portugal redigiram um relatório em que salientavam a urgência do Exército Português se preparar para combater insurreições.
O coronel Pierre Closterman, de França, e o tenente-coronel Montegomery, do Reino Unido, proferiram conferências aos oficiais portugueses.
O Exército sentia a inevitabilidade de a curto prazo ter de enfrentar a sublevação nas suas colónias e a necessidade de se preparar para essa nova situação. O tenente-coronel Nunes da Silva, que tinha regressado de França depois de frequentar o Curso Superior de Guerra, na Escola de Guerra de Paris, onde já se ministrava uma disciplina de Guerra Subversiva, foi colocado como professor no Instituto de Altos Estudos Militares (IAEM) e dirigiu os trabalhos dos seus alunos do curso de estado-maior para elaborar e publicar os “Apontamentos para o Emprego das Forças Militares em Guerra Subversiva”.
Esta publicação constituiu a base do manual de doutrina “O Exército na Guerra Subversiva” produzido pelo Estado-Maior do Exército e publicado em 1963, com uma edição corrigida em 1966.
O coronel Hermes de Oliveira, que esteve na Argélia antes da missão de Franco Pinheiro, publicou em 1960 um outro importante trabalho sob a égide do Estado-Maior do Exército, “Guerra Revolucionária”, que explicava os fundamentos da moderna guerra subversiva sob a perspectiva portuguesa.
Simultaneamente com esta actividade teórica, foi criado em Lamego, a 16 de Abril de 1960, o Centro de Instrução de Operações Especiais, com a finalidade de preparar quadros e tropas para combaterem em ambiente de contra-subversão. Foram aqui preparadas as primeiras Companhias de Caçadores Especiais.
O IAEM, por sua vez, passou a dedicar cada vez maior atenção a este novo tipo de guerra nos seus cursos.
Os teóricos da Contra-subversão
– Artur Henriques Nunes da Silva
Foi o coordenador do grupo de oficiais do Curso de Estado-Maior que em 1962 publicaram no Instituto de Altos Estudos Militares o documento “Apontamentos para o Emprego das Forças Militares em Guerra Subversiva” inspirador do regulamento “O Exército na Guerra Subversiva”, publicado em 1963 pelo Estado-Maior do Exército.
– Renato Marques Pinto
Entre 1958 e 1959 frequentou em Inglaterra com Pedro Cardoso cursos de informações na School of Military Intelligence, de onde trouxeram os conhecimentos sobre as guerras subversivas da Malásia, do Quénia e de Chipre. Foi professor no IAEM.
– Pedro Cardoso
Entre 1958 e 1959 frequentou em Inglaterra cursos de informações na School of Military Intelligence.
Trouxe de Inglaterra o manual “Keeping the Peace (Duties in Support of the Civil Power)” – “Manter a Paz (Tarefas em apoio das autoridades civis)”, que traduziu e utilizou nas lições do IAEM.
Pedro Cardoso só se dedicou à teoria da subversão e às técnicas da contra-subversão na medida em que elas lhe podiam servir na sua função de eminência parda dos poderes executivos para quem trabalhou.
Este oficial, que começou a sua carreira na Cavalaria, a mais elitista das armas do Exército, rapidamente deixou para trás os desportos hípicos e a tradicional bravata dos cavaleiros militares para ingressar em 1957 noutro corpo militar restrito, o corpo de estado-maior, onde contam mais a capacidade de apagamento voluntário, a frieza de análise, a obediência, a disponibilidade para abdicar de ideias próprias e assumir as do chefe que a coragem física, a impulsividade, o gosto pelo risco.
Pedro Cardoso nunca comandou uma unidade militar durante a guerra, manteve-se sempre numa sombra relativa que lhe permitiu surgir várias vezes e em diversas circunstâncias à luz do dia a assumir papéis de grande importância e melindre.
Ele representará, desde os anos anteriores ao início da guerra e nos que se seguiram, a figura clássica do cardeal que parece servir o monarca, influenciando e conduzindo as suas acções sem que este se aperceba.
Em 1958, já como oficial da Repartição de Informações do Secretariado Geral da Defesa Nacional, viu-se involuntariamente envolvido nas eleições para a Presidência da República que opuseram o general Delgado ao almirante Américo Tomás.
Passou depois a fazer parte do gabinete de Botelho Moniz, o ministro da Defesa que sucedeu a Santos Costa, onde se manteve até ao dia do golpe que tentou afastar Salazar.
Quando ocorreram os ataques da UPA no Norte de Angola estava integrado na delegação chefiada pelo general Beleza Ferraz, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, que estudava a situação e a futura organização militar em África.
Como estava ausente de Lisboa enquanto decorria a preparação do golpe, não foi afectado por ele e foi nomeado para organizar os Serviços de Centralização e Coordenação de Informações (SCCI). Nunca mais, ao longo da sua carreira, abandonará a área das informações, percebendo a importância delas para quem, como ele, quer interferir na gestão do poder.
Foi ele o responsável pela implantação do primeiro serviço militar de informações em tempo de guerra, o SCCI de Angola, sendo substituído nessa função pelo inspector da PIDE São José Lopes, após a demissão do general Deslandes de governador e comandante-chefe em Angola.
De Angola passou para Moçambique, de novo a dirigir a Repartição de Informações do Quartel-General em Nampula, onde elaborou dois estudos de base que ainda hoje são uma referência, um sobre as etnias de Moçambique e outro sobre a influência das religiões.
Depois de Moçambique foi convidado por Spínola para ser secretário-gera da Guiné e, de novo, se envolveu nas actividades das informações, sendo um dos artífices da operação de aliciamento de forças e dirigentes do PAIGC que redundou na morte dos três majores na zona de Teixeira Pinto.
A preparação do 25 de Abril passa-lhe deliberadamente ao lado, mantendo-se numa expectativa prudente, que incluía contactos com os vários grupos que agiam na complexa situação do final do regime.
– Kaúlza de Arriaga
Foi professor de Estratégia do curso de altos comandos do IAEM, no final dos anos 60, antes de ser nomeado comandante da Região Militar de Moçambique e comandante-chefe. A sua produção teórica mais importante está condensada nas doze lições de Estratégia que ministrou no IAEM. O seu pensamento estratégico subordinava as lutas de libertação à manobra geral do comunismo. Continha uma forte componente ideológica de superioridade da civilização cristã ocidental e da raça branca. Era um defensor do papel das elites e alertou para os perigos da proletarização dos quadros das Forças Armadas, com a entrada dos filhos das classes baixas nas escolas militares.
Em termos de estratégia militar era um defensor do poder duro, através da realização de operações de busca e destruição em oposição à teoria do poder suave da maioria dos chefes militares portugueses. Esta visão estratégica, que defendeu desde muito cedo, levou-o a formar unidades de Engenharia de assalto, Pára-quedistas e, já como comandante-chefe de Moçambique, a realizar grandes operações como a Nó Górdio.
“Só seremos capazes de manter um domínio branco em Angola e Moçambique, que é um objectivo nacional, se o povoamento branco for em ritmo que acompanhe ou ultrapasse ligeiramente, pelo menos a produção de negros evoluídos, porque se acontece o contrário, se o povoamento for ultrapassado pela produção de negros evoluídos, então passar-se-ão fatalmente duas coisas: ou instalamos o ‘apartheid’, que será terrível para nós e no qual não nos aguentaremos, ou teremos governos negros”.
[Kaúlza de Arriaga, “O problema estratégico português”,
vol. XII das Lições de Estratégia do Curso de Altos Comandos]
– Santiago Inocentes
Professor de Guerra Subversiva no IAEM de 1959 a 1962.
Adepto da teoria de que a subversão era uma estratégia para implantação do comunismo, mais do que uma acção para os povos africanos alcançarem a independência.
A sua visão reforçou a teoria do Governo da conspiração comunista.
– Hermes de Oliveira
Visitou a Argélia antes da missão oficial de Franco Pinheiro. Foi professor de Geografia e História Militar na Academia Militar, onde proferiu cinco célebres conferências sobre guerras revolucionárias que serviram de base ao seu livro “Guerra Revolucionária”, editado em 1960 sob a égide do Estado-Maior do Exército e onde trata dos fundamentos modernos da guerra subversiva.
Publicou em 1963, com Franco Pinheiro e Jaime de Oliveira Leandro, “Subversão e Contra-subversão”, uma edição da Junta de Investigações do Ultramar.
– Carlos Gomes Bessa
Foi oficial do Corpo de Estado-Maior e comissário nacional adjunto da Mocidade Portuguesa para o Ultramar. Teorizou e ensinou sobre a relação entre militares e autoridades civis. Foi um dos defensores da criação das comissões de coordenação de contra-subversão criadas em Angola e que juntavam desde os escalões mais baixos da cadeia de comando, autoridades administrativas e militares.
Entre 1963 e 1966 produziu abundante obra teórica publicada na revista “Ultramar”, edição do Comissariado Nacional da Mocidade Portuguesa, de que foi director, e destinada ao público em geral, e na “Revista Militar”. Entre elas: “A Juventude e o Ultramar”, 1963, “A Africa e as suas complexidades”, 1964, “Incidências do islamismo no ultramar português”, 1965, e “Curso de Estudos Ultramarinos”, 1966.
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