Um documento elucidativo: um resumo dos acontecimentos
A descrição mais pormenorizada e, porventura, mais rigorosa dos acontecimentos de Mueda no ano de 1960 é a que consta da informação confidencial 269/B/11 do inspector administrativo Pinto da Fonseca, director dos Serviços dos Negócios Indígenas, enviada no dia 24 de Novembro de 1960 ao secretário provincial de Moçambique. Esta informação foi transcrita por João Paulo Borges Coelho na sua obra O Estado Colonial e o Massacre de Mueda: Processo de Quibirite Divane e Faustino Vanombe.
No dia 27 de Abril de 1960 apresentaram-se na administração de Mueda sete macondes (seis homens e uma mulher) que pediram autorização para distribuir e vender cartões da “Sociedade dos Africanos de Moçambique”, sociedade que “ostensivamente tem fins beneficentes, mas apenas com o intuito, tudo indica, de mascarar actividades subversivas”. Foram mandados aguardar por não estar o administrador. No dia seguinte, este castigou-os publicamente com palmatoadas, prendeu-os, e à noite mandou-os num camião para Porto Amélia.
Posteriormente ao incidente com os sete indígenas, em 13 de Junho de 1960 apresentaram-se na administração da Circunscrição dos Macondes os indígenas Quibirite Divane e Faustino Ferreira Cesteiro Vanombe, acompanhados por algumas centenas de indígenas. Estes, além de solicitarem autorização para fazerem propaganda da “Sociedade dos Africanos de Moçambique”, apresentaram vários pedidos, com carácter de reivindicações, respeitantes ao recrutamento de trabalhadores, serviço nas estradas, liberdade de deslocação, etc. De notar, em especial, as declarações que fizeram contra a exigência feita pela administração da circunscrição de os indígenas venderem a não indígenas galinhas e cabritos a preços extorsionários.
As centenas de indígenas que acompanharam o Quibirite e o Faustino, com o propósito de se oporem à sua prisão, exigiram a soltura dos sete propagandistas detidos em 27 de Abril, e de vários indígenas que julgavam estar presos. Desobedeceram às ordens para dispersar e só de tarde saíram da administração, escoltando os dois reclamantes.
A 14 de Junho voltaram estes, apoiados em mais de mil indígenas, e continuaram a expor reclamações, entre as quais incluíram o baixo preço da venda dos produtos e a exiguidade dos salários. O administrador, relatando o incidente, diz: “Esta administração viu-se pela primeira vez numa situação em que perdeu o controlo dos acontecimentos.”
No dia 16 de Junho teve lugar em Mueda uma “banja”, presidida pelo governador do distrito, a que compareceram cerca de 5000 macondes.
Tinham sido tomadas várias providências em relação a esta reunião: fora enviado um pelotão de Infantaria para as proximidades de Mueda e mantido um carro pronto, junto à secretaria, com condutor designado, para transportar a Mocímboa da Praia o Quibirite e o Faustino, logo que fossem presos.
Os acontecimentos do dia 16 de Junho em Mueda
A sucessão de incidentes na “banja” pode esquematizar-se da forma seguinte:
a) Às 14 horas teve início a “banja”, após a chegada do governador do distrito;
b) A bandeira nacional que estava içada foi arriada para voltar a ser içada com todas as honras, mas a multidão mostrou-se desrespeitosa, mantendo-se sentada. O governador mandou repetir a cerimónia, depois de ter feito uma prelecção sobre o seu significado, mas o resultado obtido foi idêntico;
c) O governador misturou-se com a massa indígena, falando com uns e com outros, após o que, postando-se em frente das escadas da secretaria, convidou a falar os que o quisessem fazer;
d) Tendo começado a chover, o governador abrigou-se na secretaria, tendo sido mandados subir para a varanda desta os indígenas que desejassem falar, bem como alguns que se tinham revelado como cabecilhas nos acontecimentos dos dias 13 e 14;
e) O governador, entretanto, mandou o pelotão de Infantaria aproximar-se de Mueda;
f) O governador chamou o Quibirite e o Faustino ao gabinete do administrador, bem como alguns indígenas, com os quais falou separadamente, vindo, em seguida, à varanda anunciar à multidão que o Faustino ficava preso, após o que regressou ao gabinete;
g) Pouco depois voltou o governador à varanda para anunciar a prisão do Quibirite, tendo ordenado a um funcionário que fosse dizer ao comandante do pelotão para avançar;
h) Entretanto, eram presos os cabecilhas, entre eles o Faustino e o Quibirite, sendo todos algemados diante da multidão e expostos na varanda da secretaria;
i) A turba enfurecida começou a protestar e cresceu para a secretaria; o governador e vários funcionários tentaram fazê-la recuar, mas não o conseguiram, tendo sido apedrejados e agredidos; como a multidão continuasse a avançar e fosse disparado um tiro – parece que para defender o governador de um indígena que pretendia apunhalá-lo – os cipaios abriram fogo sobre a multidão, tendo entrementes chegado o pelotão de Infantaria que secundou a acção dos cipaios e dispersou a multidão. Houve mortos e feridos entre os assaltantes; nos que se encontravam na secretaria registaram-se alguns ferimentos causados por pedradas.
Uma opinião
O inspector Pinto da Fonseca identifica os principais responsáveis pelos incidentes e propõe que, “por não haver qualquer colónia penal na Província, nem local de onde seria difícil sair, não vê esta direcção de serviços outra solução que não seja a sua expulsão de Moçambique, fixando-se-lhes residência noutra província, possivelmente em Cabo Verde” ou que lhes seja fixada residência, por 10 anos, em localidades separadas dos distritos de Lourenço Marques, Gaza e Inhambane, ou, na hipótese de se julgar inapropriada a proposta, que sejam contratados para São Tomé, por um período de três anos.
Mas, além das propostas, o inspector faz ainda algumas considerações sobre a forma como foi organizado o processo e que revelam o modo de funcionamento da justiça colonial.
Assim, em primeiro lugar, a organização do processo não obedeceu a quaisquer normas processuais. Muito estranhamente, começou-se o inquérito por ouvir em declarações o próprio escrivão, sem sequer o substituir para tal acto, nas quais ele mostrou ter comparticipado em muitos actos correlacionados com o inquérito e, mais estranhamente ainda, não se hesitou em acarear os declarantes com o escrivão no decorrer das suas declarações.
Muitos declarantes, na realidade, não prestaram declarações, limitando-se a confirmar as prestadas por outros, acrescentando às vezes um ou outro pormenor, e alguns foram ouvidos colectivamente sobre matéria que envolvia o apuramento de responsabilidades.
Finalmente, não foi ouvida uma só testemunha, nem as declarações foram prestadas sob juramento.
De entre as reclamações apresentadas pela população, quer antes, quer depois de 16 de Junho, merecem relevo as que respeitavam aos preços extorsivos por que os indígenas eram obrigados a vender galinhas, ovos, cabritos, etc. aos funcionários, ao recrutamento de trabalhadores efectuado por cipaios, à prisão de pessoas das famílias dos fugidos do trabalho e à obrigação de as famílias pagarem os impostos dos emigrados. Estas práticas merecem relevo por, infelizmente, serem quase gerais em toda a Província.
A obrigação dos indígenas venderem, por preços ínfimos, os seus produtos, quer queiram quer não, a não indígenas, é para eles, além de vexatória, um pesadíssimo encargo, por os não indígenas não se contentarem com o suficiente para acorrerem às suas necessidades próprias, pois compram grandes quantidades, uns para oferecerem a amigos ou pessoas de influência residentes em localidades onde tais produtos são caros ou de difícil aquisição, outros para os negociarem com grandes lucros.
A faculdade que as autoridades administrativas têm de tabelar os géneros permite- lhes fixar preços lesivos da economia indígena, pelo que mais difícil é qualquer fiscalização e saber se erros cometidos são apenas resultado de mau discernimento e de rotina, se do inconfessável propósito de defraudarem a população indígena.
Seja como for, os abusos cometidos na Circunscrição dos Macondes, que – como se notou – se verificam igualmente em quase toda a Província, merecem especial atenção, já porque é de justiça que lhes seja posto cobro, já porque é necessário tirar aos insatisfeitos, aos irrequietos e até às próprias vítimas, pretexto para assumir atitudes que possam provocar tragédias sangrentas como a de 16 de Junho último.
Liberdade para a terra dos macondes
Nesse dia de 16 de Junho de 1960, o governador do então distrito de Cabo Delgado, capitão-de-fragata Teixeira da Silva, tinha pedido ao administrador da Circunscrição dos Macondes, Garcia Soares, para convocar uma grande “banja”. O governador queria falar aos macondes, em particular àqueles que tinham organizado as três delegações da “Sociedade dos Africanos de Moçambique” vindas do Tanganica. A SAM era uma organização camponesa que se mantinha à distância da MANU (Mozambique African National Union), constituída maioritariamente por quadros urbanos e muito próxima das autoridades do Tanganica (Tanzânia). Enquanto a MANU já falava em independência, a SAM queria negociar com a administração portuguesa as condições de um regresso dos macondes a Moçambique, mas queria também as mesmas condições de vida e trabalho que no Tanganica,
cujo capitalismo colonial era mais moderno, onde não havia trabalho forçado e onde não se exigia a quarta classe para ter a carta de condução. A “Sociedade dos Africanos de Moçambique” queria que os macondes voltassem livres, queria a terra livre, queria Uhulu (em ximaconde), Uhuru (em ki-swahili), que quer dizer liberdade.
Pode pensar-se hoje que isto implicava a independência para Moçambique, e aliás alguns jovens macondes formados nas missões católicas holandesas de Imbuho e Nangololo pensavam nisso, mas essa ideia ainda não era tão nítida para a SAM. Uhulu significava antes de mais liberdade para a terra dos macondes, não propriamente para Moçambique, uma entidade que pouco lhes dizia.
Caminhos diferentes
A MANU estará na origem da FRELIMO, a SAM constituirá a base do movimento liderado por Lázaro Kavandame. As divergências entre as propostas revolucionárias da FRELIMO de criação de um Estado independente e socialista e as dos camponeses macondes de ganharem liberdade e melhorarem as suas condições de vida e de trabalho, conduzirão anos mais tarde à deserção de Lázaro Kavandame da FRELIMO, na qual se integrou durante os primeiros anos da luta pela independência, e à sua “apresentação” aos portugueses em Março de 1969.
No entanto, em 1960, a administração portuguesa não estava em condições de perceber estas divergências. A administração local de Mueda estava muito inquieta com os macondes que vinham do Tanganica e que tentavam doutrinar com ideais revolucionários os sócios do movimento Linguilanilo, uma cooperativa de produtores de algodão, que agiam legalmente no planalto e se diziam portugueses, pelo menos quando falavam ao administrador.
Mas, em Porto Amélia, o governador estava tranquilo na sua ignorância, vangloriando-se da sua capacidade de persuasão, pois já tinha falado a amotinados na ilha da Madeira nos anos quarenta. Dirigiu-se a Mueda com a sua farda branca de marinheiro e as suas condecorações, convencido que iria resolver uma disputa sobre preços de algodão. Não imaginava que, por detrás da agitação, se encontravam os novos ventos trazidos do Tanganica. Queria mesmo muita gente para ouvi-lo.
Tempos diferentes
A administração de Mueda sentia que algo de novo pairava no ar e recomendou aos cipaios que dissessem às populações que viessem sem as suas facas. O governador não queria aparecer acompanhado de soldados, bastavam os cipaios com as suas armas de antes da I Guerra Mundial, de carregar pela boca. Mais avisado, o intendente de Cabo Delgado mandou às escondidas dois jipes com um pelotão da Companhia de Caçadores de Porto Amélia, que o seguiram cinco quilómetros atrás.
Muita população que foi para Mueda nas suas bicicletas estava alegre e à espera de ter a sua Uhulu das mãos da delegação que o governador vinha acolher. Havia cerca de 5000 pessoas à sua espera, mas o governador falou apenas dos preços que iam ser bons, não anunciou a Uhulu, e nem tinha pensado que tal lhe fosse pedido. Faustino e Chibilite pediram-na. O governador, de forma inconsciente, mandou prendê-los, em frente da multidão. O aspirante administrativo hesitou, olhou para o administrador Soares, mas era uma ordem. A delegação foi algemada. A multidão avançou e um maconde tentou agredir o governador. O aspirante administrativo abateu o agressor com um tiro de pistola. Os padres brancos e o comerciante chinês gritaram para as pessoas se irem embora, mas elas avançaram para impedir o carro dos presos de seguir para Pemba. Os cipaios dispararam e os dois jipes com militares de um pelotão de Infantaria aproximaram-se para os auxiliar. Algumas pessoas foram esmagadas pela fuga das outras. O governador saiu para Pemba com os presos, seguido, sem que soubesse, pelos jipes militares, um dos quais se virou, não aguentando a velocidade do carro do comandante Teixeira da Silva.
Resultado: testemunhas directas falaram em alguns mortos, tendo uma delas referido dezasseis. Um relatório militar refere duas dezenas, um relatório da administração fala de trinta, entre mortos e feridos, a FRELIMO, no seu jornal publicado em Argel, cinco anos depois, fala de 150 mortos. No seu testemunho publicado no livro de Eduardo Mondlane, Lutar por Moçambique, Alberto Chipande disse que eram 600.
Uma nova era
Mueda foi uma tragédia de seres humanos, dos dois lados. De um lado, uma delegação de macondes do Tanganica, ultrapassados pelo significado da sua própria reivindicação de Uhulu, querendo negociar a liberdade de voltar às terras de Mueda. De outro lado, a administração local, assustada pela dimensão da “banja”. Por fim, um governador completamente ignorante da nova realidade que estava a surgir em África.
O regime português, que enviava governadores para as colónias, como recompensa de bons serviços e sem qualquer ideia da realidade, não tinha percebido os ventos da história que percorriam o continente africano. Tendo sido dez ou seiscentos os mortos (provavelmente cerca de vinte) nestes acontecimentos no ignoto planalto dos macondes, o significado político de Mueda não muda: tinha sido aberta uma nova era.
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