Antecedentes . Os anos que geraram um novo Mundo

Pidgiguiti

Uma Greve em Bissau

No dia 3 de Agosto de 1959, os marinheiros de várias embarcações costeiras das firmas de Bissau manifestaram-se no porto de Pidjiguiti por melhoria salarial, sendo a sua acção reprimida pela polícia local de que resultou, no local dos acontecimentos, a morte de sete marinheiros e duas dezenas de feridos, entre os quais três polícias, e de mais três marinheiros mortos em consequência de ferimentos.
No dia 4 de Agosto o comandante militar local, tenente-coronel Filipe Rodrigues, elaborou um relatório dos acontecimentos, que diz o seguinte:
“Relatório
Assunto: Greve de marinheiros indígenas no cais de Pidgiguiti.

1. Greve e suas consequências
a. Origem

Os marinheiros indígenas das embarcações costeiras da firma “Barbosas e Comandita” procuraram, e em grande parte conseguiram, generalizar a greve por eles iniciada aos marinheiros das firmas “Casa Gouveia” e “Ultramarina”.
Esta greve iniciada às 14 horas foi provocada por desejarem que lhes fosse aumentado o salário, negando-se a trabalhar enquanto não o conseguissem.

Edifício da cidade de Bissau. [ALN]

b. Acção

O patrão-mor conhecedor do incidente encaminhou os grevistas para junto da capitania a fim de os identificar e se possível contemporizar. Nesse grupo de marinheiros destacavam-se três cabecilhas, pelo que um chefe de brigada da PIDE que comparceu no local os separou tendo-os levado para dentro

da cerca das Oficinas Navais.

Um dos cabecilhas falando em Manjaco proferiu umas palavras em voz alta, que provocaram a aproximação dos companheiros com atitudes agressivas e parecendo pretenderem facilitar a fuga dos que se encontravam dentro da cerca das Oficinas Navais.

Em face de tal atitude foram fechados os portões das referidas Oficinas o que evitou que conseguissem o seu intento.

Momentos depois chegaram o 2º comandante da P.S.P. e o Administrador de Bissau que tentaram convencer a bem os grevistas e nada conseguiram.

Então o 2º Comandante da P.S.P. resolveu ir buscar reforços, tendo ficado dois subchefes dessa corporação junto dos marinheiros em greve. Nessa altura um dos marinheiros pega num ferro o que leva um dos subchefes a dar-lhe um bofetão. Então o subchefe vê-se cercado por muitos dos grevistas

pelo que dispara várias vezes a sua pistola mas sem ferir ninguém por pretender apenas atemorizá-los.

c. Repressão

Chega então o piquete da P.S.P. que é recebido à pedrada pelos grevistas o que levou vários guardas a abrirem fogo sem que, ao que consta, o mesmo fosse ordenado pelo 2º Comandante, que ainda tentou fazer-lhes cessar o tiro.

O 2º comandante da P.S.P. foi então buscar à sua viatura que se encontrava nas proximidades bombas lacrimogéneas e lançou umas cinco o que fez com que os grevistas tentassem a fuga em barcos, que se encontravam a pouca distância e a nado.

Um pelotão da 1ª Companhia de Caçadores foi requisitado pelo Governo para coadjuvar na manutenção da ordem e foi colocado ao longo do cais e avenida marginal para tentar, pelo fogo, obrigar as  tripulações dos barcos em fuga a entregarem-se.

Porto de Bissau.

d. Consequências

Do lado dos grevistas há a contar com 7 mortos e cerca de 20 feridos e 20 prisioneiros. A P.S.P. teve 2 subchefes e um guarda feridos.

2. Medidas tomadas pelo Comando Militar

Todas as unidades da guarnição entraram de prevenção rigorosa, tendo-se deslocado para o Q.G. dois pelotões de atiradores prontos a intervir à primeira ordem. Só um desses pelotões foi empregado em organização de rondas à cidade que se mantiveram durante toda a noite.

3. A atitude da população após os incidentes

a. A população europeia manteve-se na maior calma e fazendo a sua vida normal.

b. A população indígena na sua maioria assistiu aos acontecimentos numa atitude de expectativa sem ter havido da sua parte atitudes hostis. Contudo para poderem cumprir os rituais fúnebres das vítimas dirigiram-se em grande número, sendo a maioria mulheres, ao Palácio do Governador, para conseguirem autorização para a realização do “choro”.

Sua Exª. o Governador da Província acedeu prontamente e a multidão dispersou em boa ordem, medida que não acarretou inconvenientes antes pelo contrário. Na manhã de hoje realizaram-se os enterros das vítimas que foram também feitos na maior ordem.

Vista do porto de Bissau, onde se deram os acontecimentos de Pidgiguiti em 3 de Agosto de 1959. [ALN]

4. Enquadramento destes incidentes na actual evolução política

A forma como se desenrolaram os acontecimentos parece indicar que os mesmos estavam devidamente organizados do antecedente:

– Generalização quase imediata da greve

– Estarem munidos de cacetes, fueiros e pedras

– Terem resistido ao primeiro embate da polícia, chegando mesmo a avançar debaixo de fogo

– Retirada rápida em barcos preparados para o efeito

– A notícia chegada ao fim da tarde de ontem ao Gabinete de Sua Exª o Governador de que em Bafatá e Nova Lamego se haviam dado incidentes de que desconhecemos o vulto.

Esta última notícia provocou o pedido de S. Exª o Governador para partir na madrugada de hoje uma secção de atiradores, o que foi concedido por este Comando.

Quartel General do Comando Militar da Guiné, Bissau, 4 de Agosto de 1959

O Comandante Militar,

Luís Alberto Filipe Rodrigues

Tenente-coronel de Cavalaria”

No mesmo dia, o governador tinha enviado para o ministro do Ultramar um telegrama do seguinte teor:

“Assunto: Greve tripulantes batelões casas comerciais

Emitido em 4 de Agosto de 1959

Informo Vexa ontem 16 horas tripulantes batelões casas comerciais puseram-se em greve por julgarem baixos seus salários.

Mandei logo intervir chefe PIDE, Administrador Concelho, Comandante, graduados Polícia fim aconselhar grevistas retomar trabalho. Certa altura um Chefe foi atacado tijolos paus ficando bastante ferido seguindo-se agressão outro chefe. Destacamento Polícia interveio então tendo sido atacado junto Cais Pidgiguiti. Polícia para conter amotinados cerca oitenta disparou para ar não conseguindo dominá-los pelo que teve se defender a tiro perante avançada grevista. Neste momento caíram alguns fugindo restantes. Situação ficou nesta altura controlada não sendo necessário actuar destacamento Exército que quando por minha ordem chegou local estava caso apaziguado.

Estão presos três cabecilhas onze grevistas. Polícia agiu moderadamente de princípio, tomando atitude enérgica quando foi necessário. Há lamentar sete mortos, cinco feridos graves, onze feridos ligeiros todos manjacos grevistas. Da Polícia feridos gravemente um Chefe, um polícia, ferido sem gravidade um Chefe. Apesar características ocorrência julgo não haver influência estranha. Esclareço Vexa assunto fixação nova tabela salários mínimos está sendo objecto estudo Secção permanente. Respeitosos cumprimentos. Governador.”

Ainda no mesmo dia, o governador envia novo telegrama:

“Aditamento meu 38 informo Vexa ocorrência durou uma hora depois situação acalmou 17 horas após intervenção Polícia. Durante noite houve perfeita calma tendo polícia duas rondas Exército patrulhado cidade.

Funeral vítimas e cerimónia choro nocturno decorreram melhor ordem não sendo necessária comparência polícia. Pessoal administração porto armazéns comerciais compareceu normalmente trabalho. Faltou pessoal marítimo virtude grande maioria fugir ilhéus próximos depois incidente. Movimento não alastrou estivadores continuando assim descarga carga navio «Ana Mafalda». Mandei proceder inquérito estando também PIDE investigar procurando sobretudo saber quais instigadores movimento. Constando ontem possibilidade perturbações Bafatá, Gabu mandei seguir uma Secção Infantaria e Adjunto Polícia dando características Exército nada anormal havendo até agora. Ordenei cancelar todos telegramas noticiosos e doutra natureza referentes casos. Julgo intervenção rápida decisiva havida poderá impedir casos futuros. Informarei Vexa do que houver. Situação cidade calma.

Respeitosos cumprimentos. Governador”

Em 5 de Agosto, a informação do governador é a seguinte:

“Informa Vexa Bafatá Gabu nada registou anormal. Outras localidades interior também existe perfeita calma. Acerca Bissau, marítimos manjacos ainda não retomaram hoje trabalhos batelões. Estou procedendo diligências sentido voltem suas ocupações. Dei minha concordância Comandante Região Aérea pedido formulou Subsecretariado para manter prevenção paraquedistas e 2 PV-2 caso sua intervenção se torne necessária.”

No telegrama de 6 de Agosto, refere o governador:

“Informo Vexa ontem noite chamei três manjacos idosos pertencentes grupo abandonou trabalho. Conversa decorreu muito bem tendo eles declarado que sabendo agora Governo já está há cerca mês e meio estudar aumento salários voltavam todos trabalho, mas sob condição fossem postos liberdade manjacos presos para averiguações. Disse-lhes presos estarem bem tratados alimentados havendo necessidade manutenção prisão para esclarecimento caso apuramento responsabilidades (…) Mostram ressentimento casas comerciais sobretudo «Casa Gouveia» motivo salários baixos por vezes mau tratamento trabalhadores (…)”

Em novo telegrama do mesmo dia, escreve o governador:

“Informo Vexa além sete faleceram três marítimos resultado ferimentos graves (…) Grevistas número aproximado 400 mantêm-se ordeiros proximidade alto ?? dizendo só trabalharão mediante libertação presos que não será consentida.

Sua substituição outras raças muito difícil virtude serem únicos conhecedores segredos navegação (…)”

No dia 10, informava o governador:

“Informo Vexa situação dia 10:

De manhã mestres contramestre motoristas alguns marinheiros concentraram-se cais à vontade tendo feito matrícula perante Capitão porto funcionários Capitania. Inscreveram-se também alguns antigos desempregados. Aqueles declararam chamar restantes que não compareceram para matricularem-se 15 horas. Efectivamente tarde apresentaram-se praticamente todos continuando aparecer mais alguns antigos desempregados. Inscrição decorreu boa ordem tendo até 17 horas retomado trabalho tripulações sete lanchas «Casa Gouveia » e outras.”

Em novo telegrama datado de 11 de Agosto, informa o governador:

“Situação 12 horas 30 totalidade 53 lanchas em funcionamento. De novo entraram cerca 50 manjacos antigos desempregados.”

Embora estes documentos devam ser considerados com alguma precaução, não pode haver dúvidas sobre o desenrolar dos factos principais. Também não fica provado que o PAIGC não tivesse tido alguma importância na preparação e condução dos acontecimentos, mas o mais seguro é considerar que uma das primeiras atitudes do PAIGC foi a de aproveitar estes acontecimentos, não apenas como um sinal de mal-estar social e de puras reivindicações salariais, mas como o início de um movimento de libertação, conduzido por si.

O PAIGC e os seus herdeiros da Guiné, PAIG, e de Cabo Verde, PAICV, têm apresentado a luta dos marinheiros e estivadores do Pidjiguiti como uma das suas primeiras acções de contestação à política colonial. Ainda hoje se discute se a greve dos marinheiros e trabalhadores portuários do Pidjiguiti foi conduzida pelo PAIGC, ainda em fase incipiente de organização, ou se foi apenas aproveitada pelo PAIGC, em termos políticos. Certo é que, em 19 de Agosto, numa reunião de elementos do PAIGC, Amílcar Cabral se referiu às lições que o partido deveria tirar desse acontecimento “de modo a que não ficassem vãos os sacrifícios dos mártires…”.

Placa comemorativa dos acontecimentos de Pidgiguiti, no porto de Bissau. [ALN]

A PIDE, por sua vez, também não acreditou que a greve tivesse sido espontânea e da responsabilidade dos marinheiros e estivadores. A sede da polícia política em Lisboa exigiu esclarecimentos à delegação de Bissau.

Por seu lado, o PAIGC e Amílcar Cabral retiraram importantes ensinamentos da greve: passaram a saber que as autoridades não hesitariam em reprimir violentamente qualquer contestação mas, mais importante, Cabral ficou a conhecer as limitações de uma luta assente nas populações urbanas pois estas, que trabalhavam nos serviços e comércios, dependiam dos portugueses para viverem, enquanto os camponeses que trabalhavam as suas terras no interior eram autónomos.

O PAIGC irá assim apoiar-se, e com sucesso, nos camponeses e só marginalmente nos homens da cidade.

 

* Ver o respectivo processo no Arquivo Histórico Militar, Fundo 7.

Ponte sobre o rio Limpopo em Moçambique [CD-DN]

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