Antecedentes . Os anos que geraram um novo Mundo

Melo Antunes

Uma Homenagem Sentida

É muito raro na história de qualquer povo um homem reunir em si a coragem física, a coragem moral e a coragem histórica. Ernesto de Melo Antunes foi um dos raros portugueses em que essas virtudes se entrelaçaram para fazerem dele o grande homem que indubitavelmente foi.

Combateu de armas na mão e com coragem reconhecida, numa guerra que ele sabia injusta e injustificada, granjeando o respeito dos seus camaradas; combateu politicamente o regime responsável pela guerra, assumindo como cidadão os riscos da atitude ética e moral da luta pela democracia e pela liberdade; e, por fim, teve a coragem histórica de assumir as responsabilidades pelo fim da guerra e do colonialismo português.

Ao dedicarmos esta obra a Ernesto de Melo Antunes estamos a dar o nosso modesto contributo para o colocar na galeria de grandes figuras, onde ele devia ter lugar destacado, e para lhe agradecer, como portugueses e como militares, o seu excepcional contributo para que Portugal seja hoje uma nação respeitada e dignificada. Todos devemos a Ernesto de Melo Antunes a possibilidade de decidir os nossos destinos em liberdade.

O texto que publicamos a seguir, o relato de um informador sobre uma conferência que Melo Antunes proferiu em 1970, é um extraordinário documento que revela o melhor e o pior de nós e de Portugal. De um lado, a coragem, a grandeza, a generosidade, a dignidade de um militar que, além da luminosa clarividência com que via o futuro de Portugal e da guerra colonial, desafiava um regime ignóbil de mãos nuas, apenas armado da sua inteligência e força de carácter; do outro, o repugnante delator, o mesquinho agente infiltrado que trai aqueles que lhe abriram a porta, um ser sem nome.

É, contudo, a esse ser, a esse sabujo do regime, certamente treinado a reproduzir de memória as palavras incómodas, que devemos o documento excepcional que é a conferência de Melo Antunes.

Registe-se ainda como digna a atitude do então ministro da Defesa, Sá Viana Rebelo, que mandou secamente arquivar o papel delatório, preferindo o militar oposicionista ao verme da situação.

Nós, os autores, sentimo-nos particularmente honrados em prestar este modesto tributo a Ernesto de Melo Antunes, trazendo a público este texto, nesta obra sobre os Anos do Fim. Ele serviu-nos de exemplo e só podemos desejar que inspire também outros como nos inspirou a nós.

«No dia 25 do corrente, realizou-se na Cooperativa de Estudos e Documentação, pelas 21.30 horas, um “colóquio” sob o título de “REFLEXÕES SOBRE UMA EXPERIÊNCIA PESSOAL”,  dirigido  pelo  Capitão  ERNESTO DE MELO ANTUNES, tendo como animadores os dirigentes da Cooperativa, FERNANDO  ONETO  e  Dr.  PEDRO COELHO.

Capitão Melo Antunes em Angola [AMA]

Durante este “colóquio” foram abordados vários problemas ligados ao Exército, ou melhor, às Forças Armadas, quer em países estrangeiros, como os Estados Unidos, quer em Portugal, especialmente no que diz respeito à maior ou menor influência que o Exército tem junto dos respectivos Governos.

Quanto aos Estados Unidos, o Capitão ANTUNES referiu-se largamente à decisiva influência que o Pentágono, isto é, os Generais e o Estado Maior exercem sobre as decisões do Governo de Nixon, quanto à guerra do Vietnam. Afirmou que os Generais americanos, isto é, o alto Estado Maior, estavam estreitamente ligados às grandes fábricas de armamento, fornecedoras do Pentágono, muitos pertencendo aos seus Conselhos de Administração. Criticou severamente a política do presidente Nixon, quanto à guerra do Vietnam, que classificou de imperialista.

Depois de várias considerações sobre as Forças Armadas de diversos países da Europa, abordou o caso de Portugal.

Afirmou que o Exército exerce no nosso País forte influência junto do Governo e do seu chefe.

No regime fascista que nos governa, disse, os generais, através do Estado Maior General, dispõem de influência decisiva na solução dos problemas militares, concentrando em si, nos bastidores, grande parte do poder político, perante o qual o próprio chefe do Governo tem de se curvar.

O regime e o Governo são, de facto, dominados pelos oficiais generais, pois são eles que fazem a guerra no Ultramar, e as suas exigências são ordens para o Governo. As necessidades da guerra colonial são cada vez maiores, em homens e material, disse, e os altos comandos coloniais impõem a sua vontade ao Governo.

O regime de MARCELO CAETANO é, de facto, uma ditadura militar. O Governo, devido à guerra colonial, está, presentemente, fortemente influenciado pelos militares, que, através dos Estados-Maiores Generais, aqui e no Ultramar, impõem as suas decisões.

Ultimamente, disse, os generais que estão à frente dos altos comandos no Ultramar exigiram ao Governo a compra urgente de helicópteros, para melhor controlarem as operações militares e a actividade dos terroristas.

O Governo curvou-se perante as exigências dos generais, disse, e comprou 120 helicópteros de 5 lugares e 20 outros de maior lotação semelhantes aos usados pelos americanos no Vietnam.

O nosso Corpo de Estado Maior General é constituído, na sua maioria, por elementos reaccionários e conservadores, verdadeiros burocratas, vaidosos e comodistas, que se limitam a dar ordens, na sua maioria, confortavelmente instalados nos seus confortáveis gabinetes, em Bissau, Luanda ou Lourenço Marques, enquanto os oficiais das diversas armas se batem na frente, pelos interesses inconfessáveis dos “tubarões” que enriquecem à custa do esforço militar colonial.

Há guerras justas e injustas, disse. A nossa guerra colonial é uma guerra injusta. E é, além disso, uma guerra perdida.

Criticou severamente a tese do nosso Estado Maior General, segundo a qual a guerra do Ultramar tem sido altamente benéfica para a Economia do País, permitindo a criação de novas indústrias e o desenvolvimento de outras, ligadas ao esforço de guerra. Contestou também a afirmação de que as consideráveis somas de dinheiro, movimentadas pelos vencimentos dos soldados e oficiais destacados no Ultramar, têm tido vantagens na Economia das nossas Províncias Ultramarinas, pois a maior parte das referidas somas são enviadas ou ficam na Metrópole.

O ministro da Defesa, Sá Viana rebelo, mandou arquivar a denúncia [ADN]

Afirmou, ainda, que não era verdadeiro o boato de que a maioria dos oficiais combatentes no Ultramar estivessem materialmente interessados em fazer a guerra, levados unicamente pelas vantagens de ordem material.

Isso não é verdade, pois a guerra colonial é deveras perigosa e esgotante, tanto moral como fisicamente. E os vencimentos dos oficiais em missão no Ultramar não são tão elevados – muito pelo contrário – que compensem os terríveis riscos e esforços que a guerra colonial impõe aos combatentes. Pelo menos, posso afirmar, disse o Cap. MELO ANTUNES, que não é esse o caso dos oficiais de média patente – de capitão a tenente-coronel – que cumprem patrioticamente o seu dever de soldados, com verdadeiro espírito de sacrifício.

Na opinião do Cap. ANTUNES a solução do problema colonial só pode ser política, opinião perfilhada por todos os presentes! Militarmente, disse, nunca poderemos vencer a guerra colonial.

O prolongamento do esforço militar no Ultramar está esgotando gravemente a economia do País e sacrificando, ingloriamente, milhares de jovens, entre mortos e mutilados, em defesa duma causa sem futuro e condenada ao malogro.

O próprio chefe do Governo não ignora esse facto, mas agora é demasiado tarde para ele recuar ou negociar.

Isso significaria a sua queda e a do regime.

O Cap. MELO ANTUNES referiu-se também a uma eventual democratização do Exército. Afirmou categoricamente que isso é impossível, presentemente.

Por um lado, o País está em guerra e o Exército encontra-se, na sua grande maioria, em missão de combate no Ultramar, com os oficiais sujeitos a uma severa disciplina e ligados aos seus deveres militares.

Por outro lado, o País é presentemente governado por um governo fascista, que é de facto uma ditadura militar, estando os oficiais democratas estreitamente vigiados e controlados pelas polícias militar e política (sic).

O verdadeiro poder, militar e político, está de facto, afirmou, nas mãos de um reduzido grupo de oficiais generais das Forças Armadas em altos postos de chefia, aqui e no Ultramar, e que, através dos Estados Maiores Generais, impõem a sua vontade nas frentes de combate e na retaguarda, com a restante colaboração das polícias militar e política.

Por tudo isto, disse o Cap.  MELO ANTUNES, o problema da democratização das nossas Forças Armadas só será possível com a queda do actual regime. No pé em que as coisas se encontram presentemente é praticamente impossível qualquer tentativa revolucionária de carácter militar. Estamos em guerra, e as Forças Armadas batem-se no Ultramar no cumprimento dos seus deveres.

No momento presente compete aos dirigentes civis preparar o terreno na retaguarda, através duma adequada e eficiente propaganda e da politização das massas, especialmente do sector estudantil, no sentido duma futura solução política para a guerra colonial, embora isso implique a queda do Governo e do regime de Marcello Caetano.

Para que seja possível a democratização do nosso Exército é indispensável derrubar o regime, eliminar os generais pró-Salazaristas, agora ligados ao Chefe do Governo, bem como as polícias.

As afirmações do Cap. ANTUNES foram aplaudidas por toda a assistência, bastante reduzida e seleccionada, cerca de 38 pessoas, na sua maioria dirigentes da Cooperativa e suas famílias.

Tomaram parte activa no colóquio, além do Cap. ANTUNES, o FERNANDO ONETO e o Dr. PEDRO COELHO, que apoiaram entusiasticamente as suas afirmações, louvando a sua coragem ao abordar tão grave e melindroso assunto. No final foi pedida a maior discrição da parte dos assistentes ao colóquio, quanto às afirmações do Cap. ANTUNES, pois trata-se dum oficial no activo e sujeito a grandes sanções, se as suas afirmações forem conhecidas dos seus superiores.

Lisboa, 26 de Junho de 1970».

Texto de uma informação enviada ao ministro da Defesa, Sá Viana Rebelo, e que mereceu o seguinte despacho: “Arquivar em secreto”.

Arquivo da Defesa Nacional, Forte de S. Julião, Caixa 7670, Documento 3.

Melo Antunes junto de um helicóptero, acompanhando elementos da sua companhia de Artilharia em Angola [AMA]

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