Primeiras impressões
Quando os membros da missão enviada pela OUA chegaram a Leopoldville para unirem as forças nacionalistas angolanas à volta de uma organização efectiva e credível, encontraram o MPLA dividido e desacreditado.
Três dias antes da chegada da missão, a 7 de Julho, Viriato da Cruz, afastado da liderança do MPLA em Dezembro de 1962, conspirara com cerca de 50 membros do movimento, incluindo Matias Miguéis e Manuel Santos Lima, no sentido de disputar a liderança de Neto e levar o MPLA a juntar-se ao FNLA/GRAE. Esta tentativa de “golpe” levou a cenas de violência entre os apoiantes de Viriato da Cruz e os que se mantinham fiéis a Agostinho Neto, sendo necessária a intervenção da polícia congolesa.
Um dos dirigentes mais reconhecidos, e fundador do MPLA, Mário de Andrade, saiu nesta altura do movimento. Um abandono que danificou ainda mais a imagem do MPLA. Finalmente, Viriato da Cruz fez revelações embaraçosas sobre a ineficácia da força militar do MPLA, indicando que, ao contrário dos 10 000 elementos armados que afirmavam ter, aquele movimento contava apenas com cerca de 250 combatentes, uma capacidade deliberadamente exagerada para obter apoios.
Pela sua parte, a FNLA conseguiu transmitir uma imagem positiva de acesso privilegiado ao Governo congolês, de eficácia nas suas actividades militares anticoloniais, de coesão interna e, acima de tudo, de legitimidade, ao parecer representar a vontade da maioria dos diversos grupos nacionalistas angolanos, demonstrado pela participação de Jonas Savimbi, um ovimbundu, no “Governo no exílio”.
[Fonte: Adaptação de textos de Patrícia McGowan Pinheiro, Misérias do Exílio– Os Últimos meses de Humberto Delgado – Portugueses e Africanos na Argélia.]
O levantamento dos factos, como fonte irrefutável do quotidiano, é importante por permitir a verificação duma História que se faz com as personagens tacteando através das dificuldades, das hesitações, na busca das melhores soluções para a sua luta. Nada está pré-determinado, tudo está muitas vezes em aberto.
Uma Missão de Boa Vontade
O Comité de Coordenação para a Libertação de África, criado pela Conferência da Organização de
Unidade Africana de Adis-Abeba, que se reuniu em Dar es Salam de 25 de Junho a 4 de Julho de 1963, decidiu enviar a Leopoldville uma Missão de Boa Vontade com o objectivo de contribuir para a reconciliação dos movimentos nacionalistas angolanos.
A Missão era composta pelos chefes das delegações da Argélia, Congo (Leopoldville), Guiné, Nigéria e Uganda, que cooptaram o Senegal, e reuniu-se em Leopoldville de 13 a 18 de Julho de 1963. O seu objectivo era a reconciliação dos movimentos nacionalistas angolanos, a FNLA e o MPLA.
As duas organizações foram chamadas a depor perante a missão e, enquanto as declarações de Holden Roberto foram apoiadas pelos membros que tinham representado a sua organização em Dar es Salam e também por dirigentes de diversas regiões de Angola, Agostinho Neto recusou-se a falar em nome do MPLA, em virtude de ter sido formada uma nova frente, a FDLA (Frente Democrática de Libertação de Angola), da qual era presidente.
Esta recusa criou mal-estar porque a missão não podia ouvi-lo nesta nova função, dado o objectivo do seu mandato. Entretanto, durante os trabalhos, a missão recebeu uma carta de Viriato da Cruz pedindo para ser ouvido em nome do comité preparatório da Conferência do MPLA. Viriato Cruz expressou o seu ponto de vista na presença dos outros nacionalistas angolanos, incluindo Agostinho Neto, que foi convidado a comentar as suas declarações, tendo dado indicações sobre a força política e os efectivos militares do MPLA.
O relatório da missão
Na síntese dos depoimentos que transmitiu à OUA, a missão referiu que tinha colhido informações sobre a FNLA desde a data da sua formação a partir dos dois movimentos nacionalistas, a UPA e o PDA, e tomado conhecimento da maneira como se desenvolveu a luta em Angola, das razões da formação do Governo Revolucionário de Angola no Exílio (GRAE), recentemente reconhecido pelo Governo da República
do Congo (Leopoldville), da extensão da actividade da FNLA, do número dos seus adeptos, os seus efectivos militares e o território de Angola sob seu controlo, dos esforços da FNLA para preparar cada vez mais quadros militares e políticos. Quanto ao MPLA, tinha constatado a cisão do movimento, a situação de um pequeno contingente de quadros militares formados sob os auspícios do MPLA dos quais uns tinham aderido à FNLA, outros abandonaram o MPLA e que os restantes que ficaram com o MPLA não estavam envolvidos em qualquer acção militar e ainda que a força do MPLA e o número dos seus aderentes eram muito limitados, comparados com os da FNLA.
Tendo feito estas apreciações muito desfavoráveis ao MPLA, a Missão de Boa Vontade reconheceu que os efectivos militares da FNLA eram, de longe, muito mais importantes do que quaisquer outros, eram mais eficazes e, na verdade, a única frente de combate real em Angola, que a melhor via para fornecer ajuda aos combatentes pela libertação de Angola, seria por intermédio do Governo da República do Congo (Leopoldville). Reconheceram ainda que a existência separada e permanente de uma frente inactiva e de fraca importância como o MPLA era prejudicial ao acesso do povo angolano à independência.
Após verificar que a FNLA era o único movimento em luta, a Missão de Boa Vontade decidiu recomendar que a FNLA devia ser considerada como a única frente de combate pela libertação de Angola, que o estabelecimento de outras frentes em Angola devia ser desencorajado (…) e que devia ser solicitado a todos os governos africanos que não recebessem ou oferecessem ajuda a quaisquer outras organizações e que fosse reconhecido o Governo Revolucionário de Angola no Exílio, porque essa seria uma acção muito positiva e eficaz contra Portugal e em favor duma libertação rápida de Angola.
[Resumo do relatório geral da Missão de Boa Vontade junto dos nacionalistas angolanos, publicado na revista Révolution Africaine (Argel), nº 27, de 3 de Agosto de 1963.]
Comentários
A revista Révolution Africaine, próxima de alguns dirigentes do MPLA, fez um comentário a estas resoluções da Missão de Boa Vontade que intitulou de “Mitos e Realidades” onde é possível verificar como, em 1963, os dirigentes africanos, quer os de países já independentes, quer os dos movimentos nacionalistas, ainda dispunham de margem de manobra para apoiarem organizações identificadas com o mundo ocidental liderado pelos EUA, como a FNLA. Em 1963 não era inevitável que os novos países africanos e os movimentos de libertação tivessem de se colocar no campo da URSS para terem condições de sucesso. O processo que fez com que, na década de 1970, a grande maioria dos países africanos e dos movimentos emancipalistas já tivessem optado pelo apoio privilegiado da União Soviética e da China e que o Ocidente, com os EUA à cabeça, fossem considerados inimigos de África e da sua emancipação, é um dos melhores reveladores da ausência de uma estratégia ocidental para África.
A realidade que a missão descobriu
Do relatório da missão depreende-se que o MPLA estava, há alguns meses, dividido em duas tendências rivais – a tendência de Agostinho Neto e a tendência de Viriato da Cruz, sem falar de diversas outras tendências mais fracas.
Também ressalta que o número de militantes do MPLA, de todas as tendências, era de 200, dos quais 30 passaram para a FNLA e 90 pertenciam à tendência de Viriato da Cruz; só uma minoria ficara com Neto. Estes números foram admitidos por diversos dirigentes do MPLA que compareceram perante a missão.
Para além disso, o chefe do Departamento de Guerra do MPLA admitiu já não ter mais controlo sobre qualquer força militar e que as declarações produzidas no estrangeiro careciam de fundamento.
Concluiu-se ainda que o MPLA não dispunha de qualquer estrutura no interior de Angola (facto admitido por Neto) e que a fronteira com o Congo estava inteiramente
sob controlo da FNLA.
Também ficou claro que a formação da FDLA em Brazzaville, sob patrocínio do presidente Fulbert Youlou, não estava desligada das reivindicações territoriais deste último no que dizia respeito ao enclave de Cabinda.
No tocante à situação no interior de Angola, acrescentava-se ter Agostinho Neto declarado que o seu movimento não conseguia estabelecer contactos com o interior por causa do controlo exercido pela FNLA sobre toda a fronteira. Ao que a FNLA asseverou que, controlando efectivamente a fronteira, não podia permitir acesso àqueles que não eram portadores de um salvo-conduto emitido pela FNLA.
Perguntas sobre o MPLA
Estas constatações por parte de um organismo representativo da autoridade
suprema em África, a OUA, levaram a Révolution Africaine a formular algumas
perguntas:
“Será que as modificações surgidas no seio do MPLA depois do lançamento da guerra em Angola alteraram fundamentalmente o seu carácter, diminuindo o número de seus aderentes?
Quais foram as dificuldades objectivas que o MPLA teve de enfrentar depois dos acontecimentos de Luanda, no mês de Fevereiro de 1961?
Quais os diferendos ideológicos que provocaram a cisão entre o fundador do movimento, Viriato da Cruz, e Agostinho Neto, o seu novo presidente?
Como falhou um partido, com uma ideologia avançada e um programa estruturado, na mobilização das massas, chegando à decomposição actual, enquanto um partido rival, cujos origens se encontram numa organização de tipo tribal, sem ideologia definida, evoluiu até chegar a ser uma força nacionalista combatente autêntica com o apoio das massas?”.
Viriato da Cruz nasceu em Kikuvo, Porto Amboim, em 1928, e foi um dos fundadores do MPLA, juntamente com Mário de Andrade, Lúcio Lara, Matias Miguéis, Hugo Meneses, Eduardo Macedo dos Santos.
Saiu de Angola em 1957 e em Paris foi juntar-se a Mário Pinto de Andrade, tendo desenvolvido intensa actividade política e cultural.
Foi secretário-geral do MPLA quando Mário de Andrade foi presidente e, juntamente com ele e com Lúcio Lara, fez parte do trio que em 1961 trouxe o MPLA de Conacri para o instalar em Leopoldville. No final de 1962, Viriato da Cruz foi afastado da direcção do MPLA, cuja chefia passou para Agostinho Neto que chegara ao Congo depois da fuga de Lisboa. Neto era um dos nacionalistas angolanos mais conhecidos da altura, legitimado pela sua passagem por prisões portuguesas e representava a aposta do MPLA no sentido de unir debaixo da sua liderança os vários grupos anticoloniais angolanos.
Viriato da Cruz e Neto tiveram sempre más relações, o que conduziu o primeiro a abandonar o MPLA, tal como Mário de Andrade.
Em meados de 1963, Viriato da Cruz liderou uma dissidência do MPLA aderindo à Frente Nacional para a Libertação de Angola (FNLA), o que provocou confrontos entre os partidários de ambos os movimentos nas ruas de Leopoldville. Estas tensões contribuíram para o facto da Organização de Unidade Africana (OUA) reconhecer em 1963 o Governo Revolucionário no Exílio (GRAE) do líder da FNLA, Holden Roberto, como o único representante legítimo do movimento independentista angolano, o que resultou na expulsão do MPLA de Leopoldville.
Viriato da Cruz era um homem de fortes convicções e, ao contrário de Mário de Andrade, nunca mais voltou ao MPLA. Aproximou-se da FNLA quando esta organização estabeleceu ligações com a China. Viriato da Cruz, que fora do Partido Comunista, aderiu ao maoísmo e os chineses receberam-no de braços abertos, devido ao seu prestígio, julgando ter nele um fiel instrumento de propaganda para a sua manobra de aproximação aos movimentos nacionalistas africanos e de disputa de zonas de influência à URSS e aos EUA.
Mas Viriato da Cruz desiludiu-os ao escrever um relatório muito crítico das capacidades das elites africanas para conduzirem com sucesso a passagem dos regimes coloniais para regimes democráticos e progressistas. Uma tese que contrariava a análise desejada pela China.
Viriato da Cruz viveu os últimos cinco anos de vida na China, onde morreu em 1973, numa situação dramática de fome e doença, sendo enterrado como um indigente.
Além de político, Viriato da Cruz foi um poeta de valor, uma semelhança com Agostinho Neto. É considerado um dos mais importantes impulsionadores da cultura angolana nas décadas de 40 e 50.
Início do poema “Mamã Negra”, de Viriato da Cruz
(canto da esperança)
(À memória do poeta haitiano Jacques Roumain)
Tua presença, minha Mãe – drama vivo duma Raça,
Drama de carne e sangue
Que a Vida escreveu com a pena dos séculos!
Pela tua voz
Vozes vindas dos canaviais dos arrozais dos cafezais
[dos seringais dos algodoais!…
Vozes das plantações de Virgínia
dos campos das Carolinas
Alabama
Cuba
Brasil…
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