O colonialismo português esteve no centro do agravamento das relações entre o Governo de Lisboa e a Santa Sé. A 5 de Julho de 1969, a Frelimo (Uria Simango), o MPLA (Agostinho Neto) e o PAIGC (Amílcar Cabral) tinham dirigido uma carta aberta ao Simpósio dos Bispos Africanos: acusavam a Igreja Católica romana de “apoiar explicitamente” a guerra feita por Portugal e condicionavam a “atitude futura” dos seus povos face à Igreja à “posição que a Igreja hoje tomar”. Era difícil falar mais alto e ser mais claro. A 1 de Julho de 1970, Paulo VI recebeu os dirigentes daqueles movimentos nacionalistas, Agostinho Neto, Amílcar Cabral e Marcelino dos Santos. A audiência provocou uma tempestade nas relações entre Lisboa e a Santa Sé. A ruptura esteve iminente e só não ocorreu porque o Vaticano declarou que aqueles dirigentes foram recebidos na qualidade de cristãos e o Governo português preferiu aceitar esta pia justificação.
O Estado Novo e a Santa Sé
A Igreja Católica teve um papel decisivo na ascensão e na queda do colonialismo português durante o Estado Novo (1926-1974), pois eram confluentes os seus objectivos. De facto a defesa das colónias pelo Estado português estava associada a um modelo civilizacional proposto e garantido pela Igreja Católica através da sua evangelização. O símbolo mais claro da aliança entre o Estado Novo e a Igreja Católica foi o Acordo Missionário estabelecido entre Portugal e a Santa Sé, assinado no mesmo dia da Concordata, a 7 de Maio de 1940, e que vigorou enquanto se manteve a soberania portuguesa em África.
Na realidade, o apoio do Estado à actividade missionária da Igreja vinha desde o início da expansão portuguesa e nem nos tempos do anticlericalismo republicano sofreu interrupção, porque o seu fundamento era laico: a Igreja civilizava e, por isso, o Estado dava-lhe dinheiro e reconhecia-lhe autoridade. A Igreja aceitava de bom grado este papel em que evangelizar era civilizar e civilizar significava aportuguesar.
O movimento descolonizador não alterou a posição da Igreja Católica portuguesa
O começo das independências das colónias europeias, após a II Guerra Mundial, não alterou a posição de apoio da Igreja Católica em Portugal à continuação da soberania portuguesa sobre os territórios ultramarinos. A 13 de Janeiro de 1961, dois meses antes da eclosão do conflito em Angola, uma nota do Episcopado da Metrópole, redigida como habitualmente pelo cardeal Cerejeira, afirmava: “A guarda e conservação e desenvolvimento da herança, que todo o Portugal considera ter-lhe sido confiada pela Providência, está no ‘sentido’ da sua história, tem a significação e valor de serviço ao homem, à família, à sociedade, à ordem, à civilização, ao mundo”.
O Episcopado português deixou claro, desde o início da guerra, que não aceitaria qualquer contestação católica à política africana do Governo. Na sequência da “perda de Goa”, os bispos voltaram ao tema, na “Nota pastoral de confiança e exortação nacional”, reafirmando que não terminara a “missão histórica de Portugal” e acentuando a obrigação de “obedecer constante e lealmente à autoridade pública”, tanto mais que “o comunismo (…) assesta contra a nossa Pátria todas as suas peças de assalto” (20 de Janeiro de 1962).
Posteriormente, a hierarquia reduziu as declarações pró-colonialistas, que no final do Estado Novo acabaram por desaparecer do seu discurso.
Acções anticoloniais de católicos
Apesar de, enquanto instituição, a Igreja ter apoiado a política colonial do Governo, o desenvolvimento de acções anticoloniais católicas em Portugal acentuou-se depois da conclusão do Concílio Vaticano II. Em 1970, o padre Mário Pais de Oliveira, pároco de Macieira da Lixa, na diocese do Porto, que estivera na Guiné como capelão militar, foi julgado no Tribunal Plenário daquela cidade, por ter criticado a guerra de África e sustentado o direito à independência nas suas homilias.
No dia 1 de Janeiro de 1973, instituído como Dia Mundial da Paz pelas Comissões Justiça e Paz criadas por Paulo VI, este padre proferiu uma nova homília por via da qual viria a ser preso em Maio. O Dia Mundial da Paz de 1973 foi particularmente movimentado. A 31 de Dezembro de 1972, um grupo de católicos reuniu-se na capela do Rato, em Lisboa, e realizou uma vigília de 48 horas sobre o tema “A paz é possível”. Aprovaram uma moção condenando a “guerra criminosa” e “a atitude cúmplice da hierarquia da Igreja”.
A polícia invadiu a capela e seguiram-se perseguições aos participantes. O cardeal patriarca, D. António Ribeiro, condenou a intromissão policial e teve palavras apenas reservadas para os autores da manifestação.
Capelães militares
Os capelães militares constituíram um abcesso de fixação dos opositores católicos à guerra. Simbolizavam a aliança do trono e do altar, o apogeu do catolicismo constantiniano que o Concílio Vaticano II viera ultrapassar. Alguns capelães militares, sobretudo no começo da guerra, proferiram declarações de exaltado apoio à política colonial do Governo e à guerra. Alguns ofereceram-se como voluntários para os cursos de tropas especiais, nomeadamente de Pára-quedistas e de Comandos e existe pelo menos um caso de um capelão condecorado com uma medalha de Cruz de Guerra.
As suas actividades concentraram-se no apoio moral e religioso às tropas portuguesas. Foram esporádicos os contactos que tiveram com a população africana. Tinham, aliás, pouca ocasião para isso, pois as missões eram deliberadamente construídas longe de centros urbanos ou de aquartelamentos, para evitarem os maus exemplos de colonos e soldados.
A Igreja Católica nas colónias
Nas colónias em que a independência foi precedida pela luta armada, a presença católica só era forte em Angola e em Moçambique. Na Guiné, os católicos eram 26 499, segundo o Annuario Pontificio de 1973, numa população de mais de meio milhão de almas e, enquanto confissão, não tiveram um papel autónomo no desenrolar da guerra.
Depois do concílio, as Igrejas de Angola e de Moçambique constituíram as suas próprias conferências episcopais e tornaram-se independentes da Metrópole colonizadora mas estas estruturas representantes oficiais da Igreja Católica manterão, em ambos os territórios e tal como em Portugal, o silêncio colaborante sobre as causas e efeitos da guerra e o direito à autodeterminação dos povos africanos. Este silêncio apenas foi quebrado por alguns dos seus dirigentes a título individual, que entraram em conflito com os seus pares ou hierarquias, como foram os casos dos bispos da Beira e de Nampula. A omissão da Igreja Católica portuguesa foi vista, internacional e nacionalmente, como um apoio ao regime português. É esse silêncio que é atacado por uns e defendido por outros.
O clero missionário
A eclosão do conflito armado em África e a afirmação do direito à autodeterminação foram desafios para os quais o clero português estava mal preparado, quer os tivessem de enfrentar como capelães ao lado dos militares quer como missionários entre os povos locais. Os sacerdotes católicos eram geralmente provenientes de famílias rurais, pobres ou remediadas, com escasso acesso à informação. Nos seminários tinham-lhes inculcado que Portugal era católico por essência, que a sua grande função era missionar, civilizando, e que Salazar se ajustava a este desígnio sagrado. Dificilmente tinham acesso aos aspectos negativos da sua acção, não dispondo de elementos para formularem uma apreciação crítica.
Uma vez em África, os missionários ensinavam os indígenas a ler, medicavamnos, assistiam-nos e em alguns casos defendiam-nos dos excessos da administração e dos colonos. A sua escassa cultura política não lhes permitia interiorizar a reivindicação da independência, que surge ao mesmo tempo de um concílio destruidor do modelo de missionação no qual tinham sido formados. A adaptação será rápida mas difícil. Um dos seus frutos virá a ser o reforço dos catequistas africanos e a criação, no terreno, de estruturas eclesiais inovadoras. O que será feito em clima de guerra.
A Igreja Católica em Angola
O começo das hostilidades em Angola, em Março de 1961, foi seguido de perseguições a Igrejas protestantes – consideradas aliadas dos “terroristas” – e da repressão do clero africano da Arquidiocese de Luanda. O vigário geral, Manuel Mendes das Neves, foi preso (e morrerá, exilado em Portugal, a 11 de Dezembro de 1966). Os restantes padres foram desterrados para Portugal, entre eles os padres Alexandre do Nascimento (que foi cardeal de Luanda após a independência) e Joaquim Pinto de Andrade.
A agitação na Igreja angolana começou no final da década de sessenta. Em Abril de 1968, um grupo de cristãos escreveu uma carta aos bispos defendendo os movimentos de libertação e o Governo proibiu os “Primeiros Colóquios Sociais” em Agosto de 1969. Também convidou os bispos de Angola a condenarem as acções do Exército Português contra populações indefesas. A acção mesmo que muito limitada de membros da Igreja Católica em Angola mereceu a atenção das estruturas repressivas do regime. A 9 de Abril de 1970, a missão de Chamavare, junto à fronteira com a Namíbia, onde missionários estrangeiros se dedicavam aos bosquímanes, foi alvo de um ataque de agentes da DGS, disfarçados de terroristas, um pretexto para o seu encerramento, no que terá sido uma medida preventiva da denúncia de massacres. Em Julho desse ano, o Governo encerrou a missão dos Irmãozinhos de Jesus.
As posições conciliadoras do episcopado angolano serão legitimadas pela nomeação pela Santa Sé do primeiro bispo negro da evangelização moderna portuguesa, D. André Muaca (auxiliar de Luanda, 1970; residencial de Malange, 1973), embora fossem contrariadas por Lisboa.
A Igreja Católica em Moçambique
A evolução em Moçambique foi diferente da de Angola. Os conflitos no interior da Igreja foram mais agudos pois foi mais violenta a guerra, principalmente a partir de 1970, devido à Operação Nó Górdio no Norte e às exigências da segurança da barragem de Cahora Bassa, em Tete. Por outro lado, era mais fraca a presença portuguesa tanto na sociedade como na Igreja e eram em maior número os missionários estrangeiros, predispostos para sentirem os pontos fracos do nacionalismo missionário português. A sociedade moçambicana era mais complexa que a angolana, a população de origem europeia era maioritariamente constituída por funcionários e quadros das grandes empresas e não por proprietários rurais, como em Angola, fruto dos contactos com as comunidades da África do Sul e dos comerciantes árabes, indianos e chineses, a população indígena era muito mais diversificada culturalmente do que a de Angola e por isso a Igreja Católica em Moçambique teve de enfrentar desafios difíceis que causaram fracturas internas entre “conservadores” alinhados pela política do regime e “progressistas” que apoiavam o direito à independência.
A Guerra Colonial dividiu a Igreja em Moçambique
Moçambique foi o único episcopado de matriz portuguesa que não manteve a regra da unidade pública. Uma facção chefiada pelo arcebispo de Lourenço Marques, D. Custódio Alvim Pereira, defendia expressamente a soberania portuguesa. Uma outra, mais numerosa e sobretudo mais activa, cujo expoente era o bispo de Nampula, D. Manuel Vieira Pinto, atacava abertamente a identificação da Igreja com Portugal e preparava-se para defender o direito à independência. D. Manuel Vieira Pinto herdara a defesa das posições autonomistas e contestatárias do bispo da Beira, D. Sebastião Soares de Resende, falecido em 1967. O Vaticano não hesitou mesmo em descredibilizar a hierarquia moçambicana. Em Julho de 1969, depois de terem sido convidados a participar no Simpósio dos Bispos Africanos em Kampala, presidido pelo Papa Paulo VI, os bispos D. Francisco Nunes Teixeira, de Quelimane, e D. Eurico Dias Nogueira, de Vila Cabral, foram desconvidados quando se preparavam para seguir viagem, enquanto os prelados angolanos D. Altino Ribeiro Santana, de Sá da Bandeira, e D. Francisco Esteves Dias, do Luso, foram à conferência sem problemas. Era claro o isolamento internacional da Igreja em Moçambique. Neste contexto, os acontecimentos precipitaram-se: denúncia da guerra, divisão da Igreja, conflito com o Estado.
A Igreja e Wiryamu
Os excessos da guerra feriram fundo a consciência então à capital britânica. Na sua origem, estiveram os relatos dos missionários em Tete – jesuítas, combonianos, padres de Burgos.
Nas vésperas do 25 de Abril de 1974
Nas vésperas do 25 de Abril de 1974 desenvolvia-se em Moçambique outro conflito de elevada gravidade entre as autoridades portuguesas e a Igreja Católica de Moçambique. A 14 de Abril, domingo de Páscoa, a DGS expulsou D. Manuel Vieira Pinto, que veio para Portugal com uma variante da residência fixa. O bispo de Nampula divulgara um documento, Imperativo de Consciência, assinado também pelos padres combonianos, sobretudo italianos, que foram igualmente expulsos. Aceitavam o reconhecimento das reivindicações dos movimentos de libertação, conforme os direitos do homem, e recusavam o Acordo Missionário, os subsídios do Estado, o ensino nas escolas públicas. Diferentemente dos Padres Brancos, queriam permanecer no território, o que aumentava o embaraço do Governo.
O colonialismo e a quebra da aliança entre a Igreja e o Estado
O colonialismo contribuiu decisivamente para quebrar a aliança institucional entre a Administração Pública, as Forças Armadas e a Igreja Católica que permitira séculos de relações desiguais, baseadas na exploração, mas, apesar dessa cumplicidade, a obra das missões foi assinalável nos campos do ensino, da saúde e da assistência.
Através das missões e dos seminários, a Igreja Católica, involuntariamente, forneceu muitos dos quadros dos movimentos de independência.
Quer em Angola quer em Moçambique muitos militantes e dirigentes dos movimentos de libertação passaram pelas escolas das missões e muitos tinham estudado para padre ou para pastor.
Missões protestantes
Funções idênticas foram preenchidas pelas missões protestantes, as quais também tiveram a sua dose de perseguições policiais. Em Moçambique, por exemplo, foram presos 32 presbiterianos, a 13 de Junho de 1972, tendo morrido na prisão da Machava dois deles, um dos quais o pastor Zacarias Manganhela.
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