1970 - A ilusão das grandes operações

1970
A morte de três majores ou uma manobra arriscada

As circunstâncias

Em 20 de Abril de 1970, três majores do Exército Português, Magalhães Osório, Pereira da Silva e Passos Ramos, acompanhados pelo alferes Palmeiro Mosca e dois intérpretes, foram assassinados na região de Teixeira Pinto, perto da povoação de Jolmete a norte do Pelundo, junto ao Rio Cacheu, quando se dirigiam, desarmados, a mais um encontro com comandantes do PAIGC no chamado “chão manjaco”.

Estes oficiais prestavam serviço no Comando de Agrupamento Operacional (CAOP), com sede em Teixeira Pinto. Passos Ramos era chefe do Estado-Maior, Magalhães Osório oficial de operações e Pereira da Silva oficial de informações. Estavam envolvidos numa longa e difícil operação de aliciamento de comandantes do PAIGC para os levarem a apresentar-se às autoridades portuguesas com os seus homens e esta seria a última das reuniões. Foram recebidos a tiro pelos seus interlocutores e os seus corpos deixados no local da emboscada. Este assassínio marcou o fim trágico da Operação Chão Manjaco, lançada por Spínola, e que previa a integração da guerrilha nas Forças Armadas Portuguesas.

 

O papel de Senghor

O presidente do Senegal, Leopold Senghor, tentou desde o início da luta pela independência da Guiné encontrar vias de diálogo entre o Governo português e os dirigentes do PAIGC para chegarem a uma solução negociada que pusesse fim à guerra. Sabia que, quanto mais esta durasse, mais radical seria o futuro regime de Bissau e mais próximo de Conacri e de Sekou Touré. No início de 1970, através das embaixadas da Suíça em Lisboa e em Dacar, o Senegal estabeleceu contactos com o Governo português para conversações sobre o futuro da Guiné.

Em Fevereiro de 1970, deslocaram-se a Dacar, em representação do Governo português, Alexandre Ribeiro da Cunha, inspector-superior do Gabinete dos Negócios Políticos do Ministério do Ultramar, acompanhado pelo inspector da DGS Matos Rodrigues. Apesar da peregrina ideia de enviar a Leopold Senghor e a Amílcar Cabral uma delegação constituída por um inspector ultramarino e um outro da PIDE, para tratar de assuntos relativos à independência de uma colónia ser entendida como uma provocação, o Senegal concedeu à exótica delegação portuguesa encontros com os ministros dos Negócios Estrangeiros e do Interior, que lhe apresentaram como condições o estabelecimento de um cessar-fogo e a aceitação de conversações com o PAIGC, no sentido da autonomia da Guiné.

Ficou acordado que o diálogo prosseguiria através de um enviado especial de Dacar à capital portuguesa, e o Governo de Lisboa aconselhou Spínola a evitar lançar operações ofensivas, limitando-se à defesa contra eventuais ataques guerrilheiros.

 

As eternas indecisões de Marcelo Caetano

Em Lisboa, Marcelo Caetano e Silva Cunha, o seu ministro do Ultramar, mergulharam numa estéril análise sobre o princípio do dominó. Ceder na Guiné-Bissau abriria um precedente irreversível nas jóias da coroa de Angola e de Moçambique (o que os grandes interesses económicos não permitiriam) e Silva Cunha corroborou aquela posição com o extraordinário pretexto de lhe parecer que o cessar-fogo não tinha viabilidade e de não saber como se fazia um cessar-fogo. “As tropas ficam no terreno, nós ocupávamos a quadrícula e eles ficavam no meio do mato onde estavam?”, terá perguntado.

 

Os círculos paralelos de Marcelo Caetano e Silva Cunha

Entretanto na Guiné, com o conhecimento do Governo, Spínola iniciara desde o princípio de 1970 contactos com os chefes da guerrilha no “chão manjaco”.

Os três majores do CAOP de Teixeira Pinto, através do régulo de Cupelon de Cima, Bacar Sano, um mandinga, entraram em contacto com elementos destacados da população sob controlo do PAIGC e, mais tarde, com elementos dos bigrupos que actuavam na zona de acção do CAOP, a Coboiana-Churo.

A política de “Uma Guiné Melhor” e “Força da Razão” que Spínola estava a desenvolver tinha acentuado o desequilíbrio psicológico entre os manjacos, que o desaparecimento da FLING do incapaz François Mendy deixara confundidos, e levou o general a acreditar ser possível atrair os responsáveis e os combatentes do PAIGC na região fulcral da Coboiana-Churo. Para isso apresentou-lhes, através dos seus oficiais do CAOP de Teixeira Pinto, um plano que previa a transformação das forças de guerrilha do PAIGC em unidades africanas das Forças Armadas Portuguesas e a nomeação de Amílcar Cabral para o cargo de secretário-geral da província.

 

A visita de Silva Cunha: uma opinião em Lisboa e outra na Guiné

O general Spínola, aproveitando a visita à Guiné de Silva Cunha, expôs-lhe a situação que se vivia no “chão manjaco” e a oportunidade excepcional apresentada para desferir um golpe capaz de afectar a coesão e equilíbrio das forças adversárias. Era evidente a alusão ao que estava a preparar nos arredores de Teixeira Pinto através das conversações com os comandantes do PAIGC. Para fazer face aos encargos futuros (presume-se que a incorporação dos guerrilheiros na Força Africana) o ministro disponibilizou 16 mil contos.

Isto é, em Lisboa, junto de Marcelo Caetano, Silva Cunha era de opinião que não se efectuassem conversações com o PAIGC, mesmo através de um representante de Dacar; na Guiné, junto a Spínola, apoiava-as e até contribuía para as despesas futuras do que delas resultasse!

 

O ministro Silva Cunha na Guiné. [Revista do Povo]

 

As conversações com os comandantes do PAIGC

Pelo lado português foi sempre entendido que os comandantes do PAIGC da região da Coboiana-Churo não eram agentes duplos, mas homens que representavam parte dos seus combatentes e que faziam circular as informações entre eles. Sabe-se hoje que desde os primeiros encontros a direcção do PAIGC foi advertida pelos comandantes locais de que havia esta tentativa dos portugueses.

André Pedro Gomes, comandante da região Coboiana-Churo, exigiu a presença de Spínola, o governador e comandante-chefe, para poderem ser ratificados os compromissos acordados entre o PAIGC e os oficiais do CAOP. O general compareceu num dos primeiros dias do mês de Abril algures na estrada Teixeira Pinto-Cacheu, para a confirmação do acordado entre os seus oficiais e André Pedro Gomes, ficando decidido que os dois bigrupos que se iriam entregar desfilariam em Bissau, integrados na Força Africana.

A 16 de Abril, o general convocou uma reunião para mandar parar, de imediato, com as acções ofensivas. O encontro final para a rendição foi marcado para 20 desse mês. Os majores Passos Ramos, Magalhães Osório e Pereira da Silva, o alferes Mosca e os guias Lamine e Patrão da Costa, receberem instruções do Quartel-General de Bissau e directivas pessoais de Spínola, que fora dissuadido de os acompanhar pelo secretário-geral do Governo, o tenente-coronel Pedro Cardoso. Na manhã do dia 20 partiram ao encontro dos guerrilheiros, sem armas, num jipe vulgar e sem qualquer escolta, esperançados no sucesso dos seus esforços. Chegados ao local de encontro, foram recebidos a tiro de Kalashnikov e acabados de matar à catanada com requintes de barbárie.

 

Interesses e facções do PAIGC: a vitória dos amigos de Sekou Touré

Existia uma facção no PAIGC que estava disposta e interessada em negociar com Spínola. A morte dos negociadores portugueses significa que, num dado momento, uma outra facção contrária a essas negociações se tornou maioritária na direcção do PAIGC.

É a emergência vitoriosa da facção pró-Sekou Touré no topo da hierarquia do PAIGC que explica, embora não justifique (a morte de homens desarmados que vão parlamentar não tem justificação), o assassínio dos militares portugueses e dos seus acompanhantes e os requintes de barbárie com que foram chacinados.

 

A intransigente indecisão de Marcelo Caetano favoreceu os radicais

Como já tinha acontecido com o assassínio de Mondlane, uma acção do Governo português, neste caso uma omissão, favoreceu a solução política que mais dificultou a situação militar.

 

A violência dos assassinos: salvar a pele

O assassínio dos militares portugueses foi executado por alguns dos comandantes do PAIGC comprometidos com a rendição. Parece claro que terão mudado de atitude ao sentirem as mudanças na correlação de forças na cúpula do PAIGC e tentaram evitar a punição demonstrando a maior crueldade pelos seus adversários. O medo dos assassinos foi a causa que fez com que os oficiais portugueses tivessem de ser mortos com requintes de selvajaria.

 

Amílcar Cabral

Cabral esteve ausente de todo este processo. Em 25 de Fevereiro encontrava-se nos Estados Unidos a apresentar um relatório sobre a Guiné e depois desapareceu de cena, quando se tornou evidente a recusa ao diálogo por parte de Marcelo Caetano.

Marcelo Caetano conseguira num só acto enfraquecer Amílcar Cabral, aquele que poderia ser um dos seus melhores interlocutores (caso Caetano tivesse alguma ideia como resolver a situação) e Spínola, um dos generais que o podia apoiar.

Colocado numa posição de fragilidade, Cabral teve de deixar os homens de Sekou Touré assumirem o controlo da situação. Conseguiu salvar a cabeça dos envolvidos, mas perdeu mais algum poder e ficou mais exposto à traição que o mataria em Janeiro de 1973.

A seguir à morte dos majores, Spínola emitiu a seguinte Directiva (10/70 do CCFAG): “… Face à natural reacção resultante da eliminação da equipa de oficiais do CAOP, que constituía elemento preponderante no desequilíbrio psicológico das populações do “chão” manjaco, considera-se conveniente reactivar o esforço militar, na área, em ordem a impedir, a todo o custo, a anulação dos objectivos psicológicos atingidos”.

 

Amílcar Cabral em Conacri. [foto de Bruna Pollimeni]

 

A conquista do “chão manjaco”

A importância que Spínola reconhecia aos manjacos derivava do facto de o PAIGC estar a fazer um grande esforço de conquista sobre eles, de modo a fechar o cerco a Bissau, na medida em que já dominava praticamente todo o chão balanta. Os manjacos eram assim dos únicos povos ainda não completamente alinhados pelo PAIGC. Foi por estas razões que Spínola considerou a conquista dos manjacos uma prioridade na sua manobra para 1970.

O êxito inicial de Spínola no “chão manjaco”, onde ele decidiu exercer o esforço de acção psicológica, tornou-se um óbvio embaraço para o PAIGC, na medida em que os militares do CAOP desenvolveram todo um trabalho de sapa e conseguiram, através de dignitários locais, penetrar no dispositivo do PAIGC.

 

A Directiva 65/69 – um marco na concepção de Spínola

Esta directiva é da maior importância devido às repercussões que teve na condução da manobra estratégica socio-económica de Spínola.

O general privilegiou a actuação psicológica sobre as populações sob controlo do PAIGC, de forma a conseguir a sua apresentação ou, no mínimo, a aceitação do duplo controlo. Quanto ao PAIGC, e esta é a parte mais sensível e inovadora, a directiva orientava os esforços de informação e acção psicológica na dissociação do binário dirigentes/combatentes e na anulação do compromisso ideológico e da determinação de luta dos combatentes do PAIGC, por forma a conseguir o máximo de apresentações de elementos activos, a recuperação dos ex-combatentes e a captação dos ainda combatentes.

 

Homenagem da população ao general Spínola. [ADS]

 

O PIFAS – o Programa de Informação das Forças Armadas

Em Nhacra, perto de Bissau, foi instalado um potente emissor e o Comando-Chefe criou o Programa de Informação das Forças Armadas (PIFAS) emitido pela rádio e dirigido a toda a população (europeia e africana). O PIFAS era emitido durante três horas semanalmente, em várias línguas nativas (manjaco, fula, mandinga e balanta), além de crioulo, uma vez que a língua portuguesa tinha pouca penetração na Guiné.

 

Deserção e interferência

Os programas radiofónicos do PIFAS fomentavam a deserção e contestação no seio do PAIGC e contavam ainda com um serviço técnico destinado a interferir na audição dos programas da Rádio Libertação, do PAIGC, e de outras rádios estrangeiras, sendo ainda apoiados pela imprensa, através da revista Panorama da Guiné e o jornal Voz da Guiné.

 

Graduação de quadros guineenses

Outros expedientes de grande poder em termos de acção psicológica foram utilizados, mormente a graduação de novos oficiais e sargentos africanos e apromoção de visitas de entidades e jornalistas estrangeiros, por forma a tentar neutralizar o clima de sucesso que a bem orientada campanha do PAIGC vinha conseguindo.

 

A Força Africana

A Força Africana seria constituída por batalhões e companhias de tropas especiais, Comandos e Fuzileiros, por companhias de Caçadores, as antigas companhias do recrutamento da província e por unidades de milícias, reunidas sob um comando unificado na dependência do comandante-chefe, o “Corpo de Milícias”.

Spínola previa utilizar esta força na acção dinâmica de contraguerrilha – as unidades militares africanas – e na protecção e enquadramento da autodefesa dos núcleos populacionais – as milícias, reservando ainda as operações especiais além-fronteiras para o Batalhão de Comandos Africanos e o Centro de Operações Especiais. Ao atribuir estas missões à Força Africana, deixando para as forças metropolitanas as missões estáticas e de apoio, o general Spínola, embora nunca o tenha afirmado publicamente, colocava a guerra como uma questão entre africanos, uns, pró-portugueses, a combater contra outros, nacionalistas do PAIGC. As divergências entre Spínola e Marcelo acentuaram-se quando este percebeu que, para Spínola, a africanização das tropas na Guiné era o caminho para a criação de umas Forças Armadas capazes de enfrentar o PAIGC e de constituírem o suporte ao Estado da Guiné.

 

Militares dos Comandos Africanos na Guiné. [AMG]

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