Aldeamentos estratégicos: instrumentos tácticos
No que respeita às medidas tomadas para a deslocação de populações, o projecto de Cahora Bassa tornou-se um caso paradigmático. De facto, para os responsáveis pela fase inicial da construção da barragem era uma questão de fé afirmar que os benefícios a longo prazo para as populações locais seriam superiores aos inconvenientes. Depressa se verificou que essa fé não era suportada pela realidade. Tal como em todas as outras zonas de guerra, também no Zambeze os aldeamentos eram parte integrante da manobra militar contra-subversiva para afastar as populações dos movimentos de guerrilheiros e retirar-lhes a sua base de apoio. Por causa dos prazos do contrato, do alastramento da guerra e dos orçamentos, não havia tempo nem dinheiro para perder, e as comunidades do vale do Zambeze suportaram piores condições do que as habitualmente oferecidas pelos empreendimentos hidroeléctricos. As autoridades civis e, principalmente, as militares deixaram de se preocupar com a noção de aldeamento voluntário e as populações eram simplesmente avisadas da inundação das suas terras, mandadas sair e reunidas nos aldeamentos cuja localização era escolhida em função das necessidades de segurança ou da manobra militar e não da habitabilidade.
Estava previsto o deslocamento de 25 000 pessoas, mas no final de 1973 esse número tinha já subido a 42 000. Como aconteceu em muitos outros locais em que as autoridades civis ou militares obrigaram grupos desfavorecidos da população a mudarem de lugar pela construção de empreendimentos hidroeléctricos, os camponeses do Zambeze foram encerrados em aldeamentos com muito poucas condições.
Um princípio duvidoso, uma má execução e péssimos resultados
As grandes operações de aldeamento em Angola e Moçambique foram, de forma geral, desastrosas, com a fuga, o abandono e a passagem para o adversário dos aldeados. Foi assim no Leste de Angola e em Tete, e as operações de pequena e média dimensão como as de Cabo Delgado e do Niassa foram de duvidosa utilidade.
Má avaliação das populações e má relação das autoridades entre si
Apesar da construção dos aldeamentos ser da responsabilidades dos governadores e administradores civis e não dos comandantes militares, nas reuniões mensais dos Conselhos de Defesa das regiões afectadas por essas medidas as discussões entre civis e militares eram por vezes acesas e grandes as discordâncias entre eles. Surgiam então as surpresas das autoridades pela aversão dos nativos às restrições impostas pela vida em instalações permanentes, os actos de rebeldia que exigiam acções punitivas, os quais agravavam as resistências e terminavam muitas vezes pela competição/sobreposição entre autoridades civis e militares que conduzia ou a um alhear de responsabilidades da parte vencida ou a más atitudes da parte vencedora. No meio destas disputas encontravam-se as populações e as pessoas metidas nos aldeamentos.
A vida no aldeamento
Os habitantes do aldeamento estavam de facto presos e debaixo de vigilância, com os seus movimentos controlados, as entradas e saídas eram feitas por um ponto de acesso guardado por milícias e apenas com autorização. No aldeamento as condições de vida eram rudimentares. Um aldeamento típico tinha entre quinhentos e mil habitantes que viviam em palhotas cercadas por arame farpado. Além do mais, as novas terras atribuídas aos deslocados eram quase sempre longe do rio, rochosas e difíceis de trabalhar.
O aldeamento: o local da máxima contradição da política colonial
O fim da lei do indigenato em 1961 tornou todos os habitantes das Províncias Ultramarinas cidadãos portugueses de pleno direito.
Em Angola, na Guiné e em Moçambique não vigorava nenhum estado de excepção previsto na Constituição: nem estado de guerra, nem de sítio, nem de emergência, que pudesse justificar a limitação de direitos aos cidadãos. Não existia, pois, qualquer justificação legal para obrigar um cidadão a sair do seu local de habitação e a ir aldear-se noutro, imposto pelas autoridades.
Um acto de violência
Os aldeamentos aparecem por vezes nos estudos sobre a Guerra Colonial como uma acção normal da administração e não poucas vezes são apresentados como uma obra meritória das autoridades portuguesas que retiraram da selva e dos matos os selvagens para lhes oferecer os primores da civilização. Ora, o aldeamento foi, antes de mais, um acto de violência à margem da lei fundamental: as populações eram, simplesmente, levadas como um rebanho para outro local. Para trás ficavam as suas terras de cultivo, as “machambas”, os seus locais de culto e de história. A albufeira de Cahora Bassa submergiu o túmulo de Kanyemba (divindade zimbueana que encarna os espíritos dos antepassados e realiza diferentes formas de adivinhação), situado em Malima, afectando gravemente os cerimoniais do culto dos povos tauara e seu impacto prático na previsão do tempo. As populações eram deportadas das suas aldeias e casas, sem qualquer indemnização, sem qualquer negociação e, muitas vezes, sem qualquer aviso.
Uma operação militar em tempo de guerra
Além de um acto de violência, o aldeamento de populações é uma operação militar em tempo de guerra. Uma operação idêntica à de destruição de culturas com lançamento de desfolhantes ou herbicidas, com finalidades militares precisas: retirar base de apoio ao inimigo. Por vezes as operações de aldeamento são integradas no capítulo das operações psicológicas, como um acto da acção psicosocial, da APsic; ora o aldeamento é uma operação militar ofensiva e violenta. Só existiram acções de aldeamento nas zonas de guerra. Em Angola começaram no Norte e a acção mais conhecida é a Robusta, na Guiné o processo de aldeamento teve características diferentes, mas só se desenvolveu com a guerra, e em Moçambique o aldeamento começou em 1966 nos distritos do Niassa e de Cabo Delgado, aqueles onde a guerra teve início. É, além disso, uma típica acção colonial: nenhum branco, ou conjunto de brancos, foi aldeado, pois os colonatos criados a partir dos anos 30 em Angola e em Moçambique não tinham estas características.
Os verdadeiros objectivos dos aldeamentos
Num documento do Exercício Alcora, classificado de muito secreto, os militares das forças armadas de Portugal, da África do Sul e da Rodésia estabeleceram seis finalidades principais a serem atingidas pela política de aldeamentos em Angola e Moçambique:
Os aldeamentos em Moçambique
Os primeiros aldeamentos em Moçambique foram construídos em 1966, mas só em finais de 1968 é que a política começou a tomar forma concreta. Em Tete, o aldeamento forçado só foi iniciado em princípios de 1970, com os trabalhos de Cahora Bassa e devido à actividade da FRELIMO, que se antecipou na conquista das populações. As populações reagiram ao serem retiradas dos locais tradicionais, aproveitando todos os pretextos para dificultar ou retardar a ida para os aldeamentos, para atrasar os trabalhos inerentes à sua construção ou para os abandonar, regressando à mata. Paralelamente, as autoridades civis e militares reconheceram que muitos dos aldeamentos não possuíam as condições de vida, segurança e de controlo das populações que lhe permitissem constituir-se em “pólos de atracção”.
Fome, autoridades tradicionais e autoridades administrativas
Houve casos de populações que abandonavam os aldeamentos em massa e chegaram a registar-se casos de fome. Estas condições incipientes de alguns aldeamentos desacreditavam o reordenamento que se pretendia efectuar.
A condução da população para os aldeamentos foi, segundo dados do COFI, prejudicada pelo desprestígio a que foram votadas as autoridades tradicionais.
Em consequência do arranque tardio na construção de aldeamentos, a população recolhida, apresentada, capturada ou subtraída ao controlo da FRELIMO que os constituía, porque “contaminada” do antecedente, face ao incipiente ou inexistente
controlo por parte das autoridades administrativas, mantinha contactos com a subversão.
Autoridade militar
Face ao agravar da situação militar em Tete, a solução encontrada foi colocar a região sob autoridade militar a partir de Maio de 1971. Nesta altura o Comando-Chefe pensava ser ainda possível “recuperar”, na região de Tete, grande parte da população sob controlo da FRELIMO (que, nos relatórios para a opinião pública, do mesmo Comando-Chefe, ainda não passara para sul do Zambeze) e defender aquela que ainda não tinha sido afectada. Assim, a par de uma acção militar, deveria ser realizado o reordenamento de todas as populações por forma a possibilitar o seu controlo, sendo a política de aldeamento considerada novamente a melhor forma de o fazer, acompanhada por uma intensa APsic.
Um milhão de aldeados em 1973: os “pólos de atracção”
Em Outubro de 1973 estavam aldeados perto de um milhão de moçambicanos reagrupados em 895 aldeamentos e 125 “pólos de atracção”, na curiosa designação das autoridades portuguesas para os locais de concentração criados nos distritos da Zambézia e Beira, ao longo da linha de energia proveniente de Cahora Bassa. Para Kaúlza de Arriaga, o aldeamento era a base da promoção do povo moçambicano, necessitando “serem feitos em quantidade e urgentemente, sacrificando-se a qualidade”.
Colonatos
A política do colonato estabelecida em Angola em 1952 com os colonatos da Cela e da Matala, em Angola, e em Moçambique com o colonato do Vale do Limpopo visava, numa estratégia demográfica, aumentar o número de brancos nas duas grandes colónias e atrair para elas os excessos populacionais de algumas regiões, como a Madeira e Trás-os-Montes. Os colonatos procuravam reproduzir a ruralidade das regiões de origem dos colonos, a quem eram distribuídas terras, alfaias, gado e algum capital. Apesar da propaganda, os colonatos foram um insucesso. Já durante a guerra foram estabelecidos novos programas de colonatos para promover a fixação a militares desmobilizados e, para Moçambique, foi aventada a hipótese de um programa específico para fixação de um milhão de colonos no vale do Zambeze. O resultado destas propostas foi desanimador, tendo sido muito poucos aqueles que quiseram ser os pioneiros. Até 1973, apenas se instalaram algumas centenas de imigrantes de origem madeirense e transmontana, mas com fraca formação técnica.
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