Salazar fala da Índia
No dia 3 de Janeiro de 1962, perante uma Assembleia Nacional aturdida pela queda da Índia Portuguesa, um Salazar afónico “com as emoções das últimas semanas” teve de recorrer ao presidente do Parlamento, Mário de Figueiredo, para a leitura de um texto de reconhecimento e de justificação de uma derrota, que iniciava o fim do Império Colonial Português, sem sequer poder invocar a gesta patriótica dos milhares de soldados mortos.
A 14 de Dezembro de 1961, três dias antes da invasão e ocupação dos territórios de Goa, Damão e Diu do Estado Português da Índia pelas forças da União Indiana, Salazar pedira aos soldados e marinheiros portugueses nos territórios o sacrifício da vida. Na mensagem que enviou ao governador e comandante-chefe, o chefe do governo de Lisboa reconhecia a “impossibilidade de assegurar a defesa plenamente eficaz” dos territórios, mas pedia ao general que organizasse essa defesa “pela forma que melhor possa fazer realçar o valor dos portugueses, segundo a velha tradição na Índia”. E ainda: “É horrível pensar que possa significar o sacrifício total, mas recomendo e espero esse sacrifício como única forma de nos mantermos à altura das nossas tradições e prestarmos o maior serviço ao futuro da Nação”.
A ordem dada ao general Vassalo e Silva revelava-se inequívoca: “Não prevejo possibilidade de tréguas nem prisioneiros portugueses, como não haverá navios rendidos, pois sinto que apenas pode haver soldados e marinheiros vitoriosos ou mortos”. O telegrama de Salazar a Vassalo e Silva exigia mártires que pudessem ser exibidos interna e externamente, em nome de uma política de intransigência que tinha como horizonte o futuro dos territórios ultramarinos de África – onde a guerra começara já em Angola no ano de 1961.
Salazar não queria prisioneiros
Os cerca de 4000 homens mal armados resistiram como puderam aos 50000 militares do Exército, Marinha e Força Aérea das forças indianas. Nos dois dias da invasão morreram 26 militares. Mas o contingente português acabou por se render, a 19 de Dezembro, tendo o governador, general Vassalo e Silva, ordenado a “suspensão do fogo” às suas tropas.
Os militares portugueses foram feitos prisioneiros pelo Exército indiano, entre os quais o general Vassalo e Silva. Eram os prisioneiros que Salazar não queria. Por isso puniu e perseguiu alguns dos oficiais em serviço na Índia – o que abriu dolorosa ferida nas Forças Armadas portuguesas e foi uma das raízes do derrube do regime de Salazar, 12 anos depois da queda de Goa, Damão e Diu.
Na mensagem à Assembleia Nacional, Salazar invoca o princípio da soberania nacional, tal como o definia o ordenamento jurídico da Constituição do Estado Novo – “Nós não podemos negociar, sem nos negarmos e sem trairmos os nossos, a cedência de territórios nacionais, nem a transferência das populações que os habitam para soberanias estranhas”, disse Salazar. Era o fundamento de uma política de resistência a soluções anticoloniais.
No seio do regime português ainda se discutiu a possibilidade de outras soluções para preservar a autonomia dos territórios, nomeadamente a de um plebiscito entre as populações da Índia Portuguesa, mas Salazar recusou-o por temer o precedente que se abria para o Ultramar.
[Adaptação de um texto de José Manuel Barroso, DN]
Nesta solene comunicação à Assembleia Nacional sobre o caso da Índia, Salazar afirmou ir “explicar com algum pormenor como tudo foi possível”.
Referiu as diligências políticas para “salvar” Goa, analisou a situação mundial que permitiu a agressão e, principalmente, respondeu aos críticos internos que o responsabilizavam pelo que aconteceu.
O ano de 1961 tinha sido uma sequência de afrontamentos à sua política, com o assalto ao Santa Maria, o desencadear da guerra em Angola, a tentativa de golpe de Botelho Moniz, a invasão da Índia e, no último dia do ano, o ataque ao quartel de Beja, e Salazar tentava responder aos abalos que os acontecimentos do ano anterior tinham causado à sua reputação de salvador de Portugal.
A queda da Índia: um erro clamoroso de Salazar
A Índia constituiu o primeiro e o mais duro contacto de Salazar com os “ventos da História”, que impulsionaram o movimento descolonizador, no rasto da II Guerra Mundial, e que não quis reconhecer, apesar das evidências.
A “queda da Índia”, a “perda da Índia”, como a imprensa da época classificou a anexação feita pela União Indiana, foi a demonstração da incapacidade de Salazar para entender os novos tempos, os novos equilíbrios de forças, os novos valores e os novos dirigentes.
Após as primeiras acções da União Indiana para integrar os territórios da Índia Portuguesa, Salazar travou com Nehru um duelo jurídico e diplomático, de que aparentemente saiu vencedor, pois conseguiu evitar negociações directas, viu ser reconhecido o direito de Portugal no Tribunal Internacional de Haia e obrigou o seu adversário a utilizar a estratégia indirecta através do terrorismo de grupos que não podia reivindicar como sendo seus agentes (Satyagraha). Salazar jogou tudo no proclamado pacifismo do adversário, convencido que ele jamais anexaria pela força os territórios que Portugal detinha no continente indiano, e reduziu as forças portuguesas em quase dois terços nos meses anteriores à invasão.
Acreditar que Nehru não utilizaria a força armada para cumprir o desígnio que se tinha proposto foi um erro clamoroso de Salazar.
Nehru dispunha do mandato político que o movimento dos não-alinhados estabelecera na Conferência de Bandung contra o colonialismo, e esse mandato suplantava os direitos históricos que estiveram na base da ocupação dos territórios da Ásia e de África por algumas potências europeias. Estava assim legitimado para desencadear uma ofensiva diplomática e militar destinada a integrar os territórios portugueses na União Indiana. Acresce que Nehru queria a União Indiana a desempenhar o seu papel como “chefe de fila” desse movimento no processo de descolonização, de que ele próprio tinha sido um dos principais actores.
A crença de Salazar de que a Índia não utilizaria a força militar é patente no pormenor de ter sido enviado o aviso Afonso de Albuquerque para Goa em viagem de instrução de cadetes nas vésperas da invasão. Também não foram proibidas, nem sequer limitadas, as viagens para Goa de familiares de militares e funcionários portugueses na Índia. Mais conhecido é o anedótico episódio do envio às tropas na Índia de chouriços em vez das munições pedidas para se defenderem.
Quando se tornou claro que a União Indiana encarava seriamente o uso da força armada, Salazar virou-se para a Inglaterra como a sua grande esperança. A Inglaterra que ele detestava e com quem jogara ao gato e ao rato durante a II Guerra Mundial. O Governo português fez uma sondagem em Londres no sentido de saber qual a reacção britânica se a Aliança Luso-Britânica fosse invocada para defesa de Goa e o Foreign Office, algo surpreendido, respondeu que as obrigações da Aliança, mesmo que se aplicassem ao caso de Goa, entravam em conflito com as obrigações de solidariedade da Commonwealth, de que a União Indiana fazia parte.
A Grã-Bretanha estava a desfazer-se do antigo império e não ia comprometer a sua política de futuro relacionamento com metade do mundo por causa da insensatez do ditador português. Outro erro de Salazar.
Em desespero, convencido de que era indispensável dar ao mundo a certeza de que Portugal estava disposto a combater até onde lhe fosse humanamente possível na defesa daquilo que considerava serem os seus direitos históricos, Salazar ordenou à guarnição militar da Índia que oferecesse resistência até ao “sacrifício total”.
Os militares, a quem Salazar quase desarmara nos meses anteriores à invasão, recusam o suicídio que Salazar lhes propunha e não lhe ofereceram os heróis e os mártires que ele pretendia, para exibir ao mundo e aos portugueses – pelo menos não lhe ofereceram em número suficiente e com o dramatismo de que ele necessitava.
A disparidade de forças entre indianos e portugueses era abissal
As conclusões do embaixador inglês
No relatório diplomático inglês de 1961 sobre as manifestações que se seguiram à invasão de Goa, Damão e Diu, o embaixador inglês em Lisboa escreveu: “As manifestações em frente desta embaixada (a britânica) e da americana, e o coro de insultos e ameaças para a denúncia da Aliança anglo-portuguesa e de todos os compromissos internacionais, excepto os mantidos com a Espanha e com o Brasil (que igualmente se afastou das posições portuguesas) têm como objectivo calar as críticas dos que defendem que o verdadeiro mau da fita no filme de Goa e a causa de todos os problemas de Portugal é o próprio Dr. Salazar, bem como daqueles que, embora apoiando o primeiro-ministro, pensam que ele falhou ao não dar ao Exército os meios com que defender a honra da Nação, mesmo por poucos dias”.
No total as forças portuguesas somavam cerca de 4000 homens
A conclusão do relatório do experiente embaixador Ross era que as relações anglo-lusas nunca voltariam a ser as mesmas e que algo de irrevogável se tinha quebrado para sempre. A imagem que existia da Inglaterra e a crença em amplos sectores da opinião pública que ela, apesar de toda a evidência em contrário, ainda era um grande poder com que Portugal podia contar para a defesa do Império, tinha sido irremediavelmente destruída.
Esta conclusão era perfeitamente justificada. A tradicional aliança privilegiada com as potências marítimas, a Grã-Bretanha e depois os EUA, seria substituída pela ligação ao eixo franco-alemão. A França e a Alemanha passam a ser os principais parceiros diplomáticos de Portugal durante o período da Guerra Colonial, sendo eles também os principais fornecedores de equipamento militar. A França instalará ainda uma base de seguimento de satélites na Ilha das Flores, nos Açores, e a Alemanha utilizará a Base Aérea de Beja para treino das suas tripulações.
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