Regime, situação internacional e missão das Forças Armadas
Em Julho de 1966, o ministro da Defesa Nacional, Manuel Gomes de Araújo, enviou um estudo, a que chamou directiva, ao comandante-chefe de Angola, dele dando conhecimento ao ministro do Ultramar. Depois de uma longuíssima introdução e já no seu ponto 10, o texto da directiva começa a ser esclarecedor dos seus objectivos. Refere-se assim à situação internacional: “A guerra que o comunismo internacional, aliado ao chamado terceiro mundo e com a complacência, se não, por vezes, a ajuda, pelo menos financeira, de certas potências ocidentais, faz a Portugal, com armas em África – Guiné, Angola, Moçambique – e com a propaganda e a conspiração na Metrópole, obriga o País a considerável esforço humano e financeiro. E para que em nenhum destes dois aspectos possa ser vencido, comprometendo o equilíbrio económico e humano e com eles o próprio futuro, é indispensável que o esforço militar seja acompanhado e seguido da acção das políticas externa e interna”. Procurando resumir o que pertence à política externa e à política interna como suas responsabilidades, delimita a acção exacta que pertence aos militares: “Às forças armadas compete destruir o inimigo operante, uma vez entrado no território nacional. É a sua missão fundamental, da qual não deveriam ser desviadas”.
Acção psicológica – uma missão administrativa
Angola tinha sido a primeira vítima da guerra, que já durava havia cinco anos, e tinha recebido 50% dos efectivos até então mobilizados. “Mas os resultados estão à vista: do território afectado em 1961, mais de dois terços estão em plena paz e o inimigo que ainda se mantém em determinadas áreas de refúgio no outro terço, está mais ou menos desorganizado, o mesmo acontecendo nas suas bases exteriores. Mas os efectivos empenhados continuam sensivelmente os mesmos. Ora a verdade é que nas áreas já apaziguadas grande parte deles deveriam ser substituídos por forças de segurança da Província e libertados para o desempenho da sua missão. Já seria criticável mantê-los nesta situação mesmo que não fossem precisos noutras regiões. Mas, neste caso, é inaceitável. Pois bem: é o que acontece”.
Ou seja, sendo necessário reforçar a Guiné e Moçambique, não se via razão para não reduzir os efectivos presentes em Angola, uma vez que a paz tinha sido alcançada em grande parte do território. Era esta a razão da directiva e da ideia do seu parágrafo inicial: “O controlo das populações e a detecção e repressão de sintomas de subversão que nelas se instalam é essencialmente função policial e administrativa, não apenas porque o contacto estreito com as gentes, as suas actividades, os seus interesses, as suas atitudes e a presença entre eles de indivíduos estranhos lhe são próprios e constituem função específica, permanente e especializada das autoridades administrativas e das forças de segurança pública, como também porque representa desperdício o emprego de forças militares necessariamente volumosas e pouco preparadas para tomar a seu cargo o que lhe não compete”.
Um estranho caminho…
Recuperar efectivos militares era o verdadeiro objectivo da directiva, por isso ela interessava em alto grau à “Província de Angola”, já que “o problema é seu e é ela que tem de o resolver”.
Para conseguir o seu objectivo, o ministro da Defesa Nacional segue um estranho caminho e usa métodos pouco lógicos: “Mas o ministro da Defesa Nacional não se pode dirigir directamente ao seu [de Angola] Governador-Geral. Por isso se dirige ao Comandante-Chefe”. Também será dado conhecimento da directiva “A Sua Exª. o Ministro do Ultramar”. Finalmente, “a um e a outro se pede a sua compreensão para o problema posto e a sua ajuda para o resolver”, o que não deixa de ser de difícil compreensão como conclusão de uma directiva do ministro da Defesa Nacional.
Operações de perseguição
Tanto no campo de batalha tradicional, como em ambiente de guerra de guerrilhas, a fase de perseguição do inimigo, último acto do combate, representa sempre a capacidade do combatente se superar a si próprio, encontrando forças suplementares que podem tornar-se decisivas.
Esta perseguição, nos teatros de operações coloniais, poderia implicar a necessidade de ultrapassar fronteiras, já que grande parte das acções militares ocorreram nas zonas fronteiriças, com os guerrilheiros a retirar rapidamente para o território dos países vizinhos, após uma acção típica da guerra de guerrilhas. Foi por isso que, ao longo dos anos da guerra, houve várias queixas de quase todos os países vizinhos das colónias portuguesas contra acções militares sobre os seus territórios.
Esses acções existiram, mas foram sempre, com as excepções atribuídas a acções da PIDE e às operações Mar Verde e Ametista Real, muito limitadas, consistindo na maioria das vezes em bombardeamentos aéreos junto às fronteiras e acções de âmbito restrito de pequenas unidades.
Estas acções assumiram ainda, na sua grande maioria, características locais, sendo decididas pelos comandos sem o conhecimento formal dos mais altos escalões. Os políticos portugueses, com excepção da Mar Verde, que Marcelo Caetano autorizou pessoalmente, recusavam-se a assumir a responsabilidade de intervenção de militares portugueses nos territórios vizinhos, por receio das consequências internacionais.
As forças portuguesas não perseguiam os guerrilheiros quando eles retiravam para as suas bases nos países estrangeiros, naquilo que é designado como perseguição a quente.
Razões para a não perseguição
A razão para as forças portuguesas não terem utilizado a perseguição de guerrilheiros em retirada para o estrangeiro tem sido apontada como sendo de ordem política – os políticos não queriam comprometer-se numa acção que poderia ter sérias repercussões internacionais e os chefes militares também não assumiam essa responsabilidade. Esta razão é verdadeira e não deixa de ser reveladora de prudência na utilização dos meios.
Todavia, existem outras razões de ordem estritamente militar para que as forças portuguesas não tenham perseguido os seus adversários, tanto nas respectivas zonas de acção como em territórios vizinhos (embora neste caso sempre prevaleça a razão política).
Mau comando e falta de agressividade
No caso dos militares portugueses, as principais razões para a não perseguição dos guerrilheiros, como continuação do combate, foram o mau comando das operações e a fraca agressividade das forças.
Mau comando
De um modo geral, as operações das forças portuguesas não tinham apoio de posto de comando. Quando ocorria um contacto de fogo com guerrilheiros, a força em operações realizava um combate de encontro, findo o qual guerrilheiros e militares se afastavam, passando cada um a cuidar dos seus feridos. Não existia acção de comando para enviar uma outra força para a zona de acção a fim de interceptar os guerrilheiros, ou de iniciar uma perseguição. O contacto esgotava a acção. O comando era inexistente, as forças eram deixadas à sua sorte, não se explorava sequer o sucesso dos contactos.
Não existia, na base, uma força de reserva ou de reacção
A não ser em casos graves de recuperação de feridos ou incapacidade da força empenhada de quebrar o contacto pelos seus próprios meios, não existia força de reserva imediatamente disponível. Este mau comando era típico das unidades de quadrícula a partir do escalão companhia, inclusive. O comandante de uma companhia com um pelotão em operações no exterior, se este tivesse um contacto, limitava-se a esperar que o contacto acabasse e a pedir apoio aéreo para as evacuações, se necessário. Normalmente não enviava um outro pelotão para perseguir o inimigo, nem pedia ao batalhão de que dependia, para intervir. O mesmo fazia o comandante de batalhão, quando tinha uma companhia em operações – se esta estabelecia um contacto, se sofria uma emboscada, a acção esgotava-se, mais uma vez, no local.
Raramente era pedido apoio aéreo
Os militares do Exército estavam, regra geral, mal preparados técnica e materialmente para efectuar um pedido de apoio aéreo. Desconheciam os procedimentos e não dispunham de meios de ligação e informação com os pilotos. Quando pediam apoio era quase sempre para evacuações de feridos.
Excepções a esta situação foram as operações de algumas forças especiais, principalmente as realizadas com Pára-quedistas e Comandos em Angola, em dois tipos de acção – os “salto de rã”, com utilização de pisteiros de combate e forças de perseguição helitransportadas e as acções de “caça”, realizadas pelos Comandos do agrupamento “Siroco” no Leste. Também na zona de Tete, as unidades de forças especiais, muito influenciadas pelos rodesianos, utilizaram este tipo de acção.
O generalizado mau comando das operações está reflectido nas “Ordens de Operações”, que raramente referem a existência de uma reserva pronta para actuar. Mais raras ainda são as ocasiões em que uma reserva foi empregue para estreitar um contacto e perseguir o inimigo.
Falta de agressividade
A atitude dos comandantes portugueses reflecte a atitude geral das forças portuguesas, de baixa agressividade e de poucos riscos. A falta de agressividade das chamadas tropas normais, a imensa maioria das que constituíram os batalhões e companhias de Caçadores, resultava de três razões principais – má instrução, inadequação dos objectivos, lassidão provocada pela vida de quartel em quadrícula.
Má instrução
Os militares portugueses dominavam mal as técnicas básicas relativas à instrução individual do combatente, do tiro, à utilização do terreno, das comunicações por rádio, e à orientação topográfica. Os quadros eram, em geral, tão mal preparados quanto as tropas e não existia treino táctico continuado para responder a situações correntes de ataque, de emboscada, de detecção de minas, de ligação aos meios aéreos. A condição física era em geral má, por razões alimentares, de apoio sanitário e climáticas. Não existia qualquer estímulo para a assunção do risco, nem compensação para o bom desempenho. O nível da instrução foi-se ainda degradando com o passar dos anos.
Objectivos inadequados
A apresentação dos objectivos da guerra foi um tema central da propaganda política do regime, que utilizou todos os seus meios para fazer passar a ideia central da unidade-integridade do território nacional, incluindo nele as colónias/ultramar. Combater pela manutenção das colónias/províncias ultramarinas seria o mesmo que combater pela pátria. Ora, esta mensagem nunca passou. Isto é, nunca foi aceite pela maioria dos destinatários.
Relatórios de comandantes de unidades sul-africanas e rodesianas que realizaram operações combinadas com as forças portuguesas em Angola e Moçambique referem frequentemente a distinção que os militares portugueses faziam entre Portugal e Angola ou Moçambique, que para eles, ao contrário de sul-africanos e rodesianos, não eram a sua terra. É uma observação vinda do exterior, mas os inquéritos realizados pelo Exército aos seus oficiais em 1966 e 1967, ainda muito próximo do início das guerras em Angola, Guiné e Moçambique, revelam que já nem esses acreditavam nessa mensagem. Quando questionados sobre o que pensavam sobre o problema ultramarino, a maioria considerava-o muito grave e que a acção militar não resolvia o problema.
Ora, a mera formulação da pergunta esclarece que, além dos destinatários não acreditarem na unidade nacional com a integração do Ultramar, nem o próprio Exército que a fazia acreditava. Pois fazer a pergunta era admitir a existência de duas entidades distintas – Portugal e o Ultramar, em que este funcionava como um objecto estranho causador de problemas no corpo principal.
E como os oficiais consideravam que a resolução não era militar, queriam com isso dizer que, por muito que os militares fizessem e se esforçassem, o problema não se resolvia.
A realidade demonstrou que não era possível resolvê-lo, porque ninguém combate empenhadamente por um objectivo inútil.
Lassidão
O terceiro factor para a falta de agressividade das tropas portuguesas era a lassidão causada em boa parte pela vida de quartel e pelas missões de acção psicológica, as celebradas missões da quadrícula para conquista das populações.
Partindo do princípio que a ocupação do terreno (quadrícula) e a acção psicossocial eram decisivas para a manobra de contra-subversão de ganhar os corações e as mentes das populações, restava o problema de alguém ter de combater.
A solução dos comandos militares portugueses e do Governo foi considerar que a mesma tropa podia viver num quartel, cercada por uma pequena comunidade local, prestar-lhe auxílio social e, simultaneamente, sair para combater com eficácia e vigor. A experiência mostrou que raramente isso era possível e, quando o foi, a dupla função só foi eficaz enquanto existiu na mente dos militares a distinção entre a população/amiga e os guerrilheiros/inimigos, enquanto os militares acreditaram que aquela população estava do seu lado contra os “terroristas”. Logo que essa confiança foi quebrada, e essa situação ocorreu quase inevitavelmente, bastava uma emboscada, ou uma mina perto do quartel, surgia o conflito de missões – ou a tropa deixava de fazer a acção psicológica, ou deixava de fazer operações. Quase sempre deixava de fazer operações. Algumas vezes deixava de fazer ambas as acções e limitava- se a esperar pelo fim do período de permanência naquele lugar. Era o tempo da lassidão, em que do comandante aos comandados todos se tornavam cúmplices na mentira do cumprimento das missões do plano da actividade operacional… Eram as emboscadas montadas no fim da pista e os patrulhamentos à volta do arame farpado.
Nesta situação, o maior desejo das tropas era não serem atacadas, e não colocavam, é claro, a hipótese de perseguir o inimigo.
A verdade é que a administração (contrariamente ao que o ministro da Defesa, Gomes de Araújo, entendia) nunca montou estruturas capazes de assumir as tarefas que eram da sua natureza, a fim de substituir as Forças Armadas. E estas, temendo deixar o campo do confronto pela conquista das populações abandonado, foram aprofundando a sua missão secundária, e viram-se a breve prazo completamente empenhadas em objectivos distantes da sua missão de combate.
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