Kennedy recebe Franco Nogueira
O presidente Kennedy recebeu o ministro dos Negócios Estrangeiros português, no meio da grave crise dos mísseis soviéticos de Cuba. A reunião teve lugar em Washington e começou pelas quatro horas da tarde.
“Participantes:
O Presidente (John Kennedy);
Alberto Franco Nogueira, Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal;
Pedro Theotónio Pereira, Embaixador de Portugal;
Embaixador C. Burke Elbrick;
Secretário Adjunto William R. Tyler.
O Presidente manifestou a sua satisfação por ver o Ministro e que apreciava a oportunidade para discutir com ele o estado geral das relações entre os dois países. Disse estar ciente de existirem certas diferenças entre nós quanto ao modo de lidar com vários problemas, mas esperava que fossem encontrados meios para conduzirem os dois países à atmosfera de amizade e cooperação que era característica do nosso tradicional relacionamento.
O Ministro dos Negócios Estrangeiros agradeceu ao Presidente por tê-lo recebido e disse que da sua parte desejava fazer tudo para melhorar as relações. Concordou que existiam certas diferenças, as quais eram devidas em parte à importância que os Estados Unidos atribuíam à ONU e ao papel que os EUA desempenhavam na organização. Disse que Portugal tinha interesses nacionais vitais em África que estavam a ser atacados e que Portugal estava defendendo não somente os seus próprios interesses, mas também os do mundo livre. Referiu que toda a África estava politicamente instável e que se as coisas continuassem como até aqui o continente africano tornar-se-ia comunista.
O Presidente salientou que a actual corrente de nacionalismo no mundo, incluindo África, estava a criar novas questões e a estimular novas aspirações por parte dos povos de África e que, a menos que políticas de vistas largas, e fossem adoptadas, nós cairíamos ainda em maiores dificuldades e tornaríamos a nossa missão ainda mais difícil. Disse que era evidente a partir do que tinha acontecido nos antigos territórios em África da França, da Bélgica e da Grã-Bretanha que aquelas pressões tiveram como fonte os mais elementares desejos e necessidades das populações e não foram devidas a agências externas. Disse ainda que os Estados Unidos não tinham jogado um grande papel em África. Contudo, estavam comprometidos em fazer com que os acontecimentos se desenrolem na direcção dos grandes e pacíficos interesses do mundo livre e esperavam que o Governo português prosseguisse políticas que conduzissem à criação e fortalecimento de sociedades livres.
O Ministro português repetiu com alguma extensão a posição clássica do seu governo em relação às Nações Unidas, dizendo que era um fórum para formulação de acusações extremistas, insensatas e hostis e de pedidos que não poderiam ser satisfeitos sem criar o caos e abrir o caminho à dominação comunista.
O Presidente perguntou ao ministro português se Portugal não poderia encontrar o seu próprio modo de proclamar publicamente a sua aceitação do princípio da autodeterminação. Isto constituiria um avanço de Portugal para a protecção e preservação da sua posição e influência em África.
O Ministro português disse que Portugal não era contra o princípio da autodeterminação, mas que não era possível tomar uma posição pública sobre isso pois se o fizesse os membros afro-asiáticos das Nações Unidas pediriam imediatamente a independência para Angola e Moçambique.
A conversa terminou com o Presidente expressando a sua esperança de que fossem encontrados caminhos para reduzir as diferenças entre nós, de modo a que Portugal e os Estados Unidos pudessem cooperar mais intimamente para enfrentarem os muitos problemas que se apresentam aos dois países.”
[Acta da reunião, Arquivo JFK.]
Dois pontos de vista
Como é patente nesta acta, Franco Nogueira repetiu os argumentos da utilidade de Portugal para barrar o caminho ao comunismo em África, enquanto Kennedy atribuía às injustiças coloniais os desejos de independência dos povos africanos.
Kennedy propunha que o Governo português fizesse uma proclamação aceitando o princípio da autodeterminação e Franco Nogueira respondeu-lhe que Portugal não era contra o princípio, mas que não podia dizê-lo publicamente. Esta impossibilidade de expressar um princípio em público deve ter confundido Kennedy, mas a dissimulação e a verdade encoberta eram inerentes ao regime de Salazar.
Uma reunião em plena crise dos mísseis de Cuba
Esta reunião é muito significativa ao demonstrar a importância que, ao contrário do que o Governo português, especialmente Salazar e Franco Nogueira, afirmava para consumo interno, Kennedy e a sua administração davam às relações com Portugal e à sua política colonial. É que Kennedy recebeu Franco Nogueira para conversações sobre África quando estava mergulhado em plena crise dos mísseis de Cuba e a enfrentar a provocação que a URSS fizera, ao colocar os seus mísseis balísticos mesmo defronte da costa americana.
Foi num momento deste melindre e tensão, em que Kennedy esteve a um pequeno passo de desencadear um ataque à União Soviética, de consequências imprevisíveis, que Franco Nogueira se permitiu lembrar ao presidente americano as ameaças do comunismo em África e o quanto Portugal contribuía para o conter com a sua política de intransigência colonial!
O dia 24 de Outubro de 1962 de John Kennedy
No dia 24 de Outubro, em que Kennedy recebeu Franco Nogueira, foram as seguintes as suas actividades relacionadas com a crise dos mísseis:
“Após tomar conhecimento das opções de defesa civil sobre possíveis respostas soviéticas em Berlim, Kennedy conclui que, se os EUA atacarem nos próximos dez dias a base de mísseis de Cuba, os soviéticos poderão ainda assim disparar algumas das armas sobre alvos nos Estados Unidos e mandou os seus conselheiros saberem se era possível evacuar a população de algumas cidades antes da invasão.
Às 10 horas da manhã, Kennedy falou com o seu Comité Executivo sobre as implicações da situação política, afirmando ser má ideia focar as atenções sobre Berlim, e discutiu com os seus conselheiros as vantagens e inconvenientes de decidir uma acção em resposta à presença dos mísseis em Cuba, mas afirmando não ter outra escolha. Kennedy concluiu que, como presidente, não poderia fazer menos e que a sua opinião era partilhada por quase todos os aliados dos EUA.
Kennedy falou com os irmãos sobre o lado político da crise, interpretando-a como um desejo de Khrushchov de o colocar em dificuldades antes das eleições para o Congresso.
Analisou as últimas informações sobre as negociações que estavam a decorrer nas Nações Unidas e fez, com os seus conselheiros, uma análise detalhada das fotografias dos mísseis em Cuba e dos possíveis desenvolvimentos junto à costa dos EUA e em Berlim, concluindo que seria necessário dispersar os aviões americanos das bases da Florida, para a eventualidade de um ataque dos MIG baseados em Cuba, Robert McNamara preveniu Kennedy da situação muito perigosa que existia desde que os navios americanos que se aproximavam da linha de quarentena passaram a ser seguidos por um submarino soviético.
Kennedy quis saber o que aconteceria se um navio americano tentasse abordar e revistar um navio e fosse afundado por um submarino soviético, e recomendou que fosse colocado pessoal que falasse russo em todos os navios junto da linha de quarentena para evitar mal-entendidos entre tripulações.
O general Maxwell Taylor reviu as últimas informações, que sugeriam que alguns navios soviéticos estavam a retirar. Kennedy responde que deve ser dada a possibilidade a esses barcos de se afastarem sem serem atacados.”
Kennedy interrompeu a análise da crise para receber Franco Nogueira cerca das quatro horas da tarde, e às cinco horas teve uma reunião com os líderes do Congresso para uma análise das implicações políticas das acções em volta de Cuba e em Berlim.
Esta reunião prolongou-se para além da meia-noite do dia 24.
O fim da crise
A 25 de Outubro, o embaixador dos EUA nas Nações Unidas, Adlai Stevenson, confrontou os soviéticos na ONU com as suas responsabilidades na crise, mas estes recusaram responder e as forças americanas foram colocados no grau de prevenção DEFCON 2 – o mais alto de sempre, atingido em situação real, na história dos Estados Unidos.
Nesse dia, Kennedy respondeu à carta de Khrushchov, salientando que a União Soviética tinha afirmado repetidamente que não estacionaria armas ofensivas em Cuba e que era esta violação que estava na origem da resposta dos Estados Unidos.
Nas Nações Unidas o secretário-geral U Thant continua a fazer esforços para cessar as hostilidades, dando a ambos os lados um período de reflexão. Kennedy rejeita o plano de U Thant e o embaixador Stevenson apresenta mais provas fotográficas dos mísseis.
Face à recusa dos Estados Unidos, as Nações Unidas começam a discutir um novo plano com garantias de não colocação de novos mísseis enquanto se discute a retirada dos existentes. Nas 24 horas seguintes nenhum navio soviético foi detectado.
A 26 de Outubro, a crise parecia a caminho de ser resolvida. O Comité Executivo recebeu uma carta de Khrushchov afirmando que a União Soviética retiraria os seus mísseis de Cuba se o presidente Kennedy desse públicas garantias de que os Estados Unidos não invadiriam Cuba.
Mas, nesse mesmo dia, a CIA informou que continuava a construção de silos de mísseis e Kennedy afirmou que só uma invasão ou um ataque poderiam quebrar o impasse e deu ordens ao Departamento de Estado para planear o estabelecimento de um governo civil em Cuba após a invasão.
Uma nova carta, tornada pública por Khrushchov, apresentou um possível acordo para pôr fim à crise e Robert Kennedy encontrou-se secretamente com o embaixador Dobrynin e concordou depois de telefonar ao presidente que os Estados Unidos retirariam os seus mísseis da Turquia.
Nas Nações Unidas, U Thant propôs um plano em duas fases: 2/3 dias sem actividade naval e sem construção de silos em terra e negociações para desmantelar e remover os mísseis, com a garantia da integridade territorial de Cuba. Também pediu aos Estados Unidos para desmantelarem as bases de mísseis na Turquia e em Itália como parte do acordo.
Esta proposta era idêntica ao acordo estabelecido por Robert Kennedy com o embaixador soviético e Khrushchov aceitou-o. Contudo, o acordo sobre a retirada dos mísseis da Turquia permaneceu secreto durante décadas.
A 27 de Outubro, a CIA informou que cinco silos de mísseis intercontinentaisestavam operacionais em Cuba. Uma nova mensagem de Khrushchov reafirmou o seu desejo de remover os mísseis sob supervisão das Nações Unidas, como contrapartida do compromisso dos EUA de desmantelarem as suas bases de mísseis na Turquia. Kennedy considerou que desencadear uma guerra perante esta oferta de Khrushchov seria uma decisão insuportável e, quando um avião U-2 foi abatido sobre Cuba por um míssil antiaéreo, não deu ordem para atacar a base dos SAM, como tinha decidido anteriormente.
Tentava, assim, arrefecer a crise, e Robert Kennedy encontrou-se de novo com o embaixador Dobrynin, conseguindo um acordo: remoção dos mísseis de Cuba, sob supervisão das Nações Unidas, contra a declaração pública de que os EUA não invadiriam Cuba e a promessa secreta de que os EUA removerão os seus mísseis da Turquia dentro de um prazo razoável.
A 28 de Outubro, Khrushchov anunciou na Rádio Moscovo o desmantelamento dos mísseis em Cuba e não referiu a exigência do desmantelamento dos mísseis americanos na Turquia. A crise acabou.
Em 21 de Novembro, precisamente um mês após o início da crise, Kennedy deu por findo o bloqueio a Cuba quando Khrushchov concordou em retirar os bombardeiros nucleares IL-28.
Três décadas mais tarde, uma fonte oficial soviética revelaria que armas nucleares móveis e mais de 40 000 militares soviéticos permaneceram em Cuba para prevenir uma invasão americana.
[Arquivo JFK em www.hpol.org/jfk/cuban]
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