Os sinais que Salazar não quis receber
Em 6 de Dezembro de 1960 reuniu o Congresso dos 81, em Moscovo, que contou com a presença de oitenta e uma delegações de países comunistas, partidos comunistas e vários movimentos de libertação.
As deliberações anunciavam um certo número de países como alvo de actividades subversivas e Portugal e as suas colónias estavam no primeiro lugar da lista. Anunciavam também que a estratégia para derrubar a ditadura em Portugal seria perturbar a situação nas colónias, através do apoio a organizações nacionalistas, e fomentar a subversão nas universidades portuguesas.
Os países nascidos das antigas colónias francesas, belgas e inglesas deviam cercar e isolar as colónias portuguesas e isolar Portugal. O plano previa o desencadear de uma guerra debilitante nas colónias que facilitasse o derrube da ditadura e a independência das colónias portuguesas.
As actas da reunião foram publicadas na revista Notícias da NATO e dadas a conhecer ao Governo português ainda em Dezembro.
Ainda em finais de 1960, um informador da PIDE em Leopoldville informou o seu chefe por carta que “dentro em breve explodirá na nossa terra de Luanda uma grave revolta, pois todos os naturais de Angola aqui residentes estão preparados para o assalto” e acrescentava: “Informai todos de que dentro em breve, vai espalhar-se uma grave onda de revoltas…”.
Em Janeiro de 1961 realizou-se uma reunião em Nóqui, na fronteira com o Congo, entre o comandante militar, o administrador da circunscrição e o responsável da PIDE. O responsável da PIDE informou que as actividades da UPA se tinham intensificado junto à fronteira com o Congo e que estaria a ser preparado um plano de terror.
A 4 de Janeiro, um telegrama do chefe do posto de Porto Rico, em Santo António do Zaire, referia correr com insistência entre os indígenas da região que a independência de Angola ocorreria por aqueles dias.
Ainda a 4 de Janeiro, a PIDE informava o governador-geral de Angola de que constava estar a UPA a enviar emissários a Angola para subornarem militares de raça negra, convencendo-os a desertarem para o Congo.
A 2 de Fevereiro, a delegação da PIDE de Luanda noticiava várias atitudes suspeitas dos indígenas na região de Santo António do Zaire.
A 7 de Março, a PIDE informou sobre a concentração de grande número de elementos militarizados da UPA em Kiangolo, Congo, para conquistarem Maquela do Zombo.
Em 7 de Março 1961, os Estados Unidos avisaram Portugal através do seu embaixador em Lisboa, Burke Elbrick. O embaixador transmitiu a Salazar o documento enviado pelo secretário de Estado Dean Rusk, por ordem de Kennedy: os Estados Unidos prevêem convulsões graves em Angola, do tipo das do Congo ou piores, e vão votar contra Portugal em 15 de Março.
Em 13 de Março de 1961, um informador da PIDE, na povoação de Cuimba, norte de Angola, junto à fronteira, informou que os homens da UPAse preparavam para fazer “grande confusão”, matando todos os brancos.
Em 14 de Março de 1961, o posto da PIDE de S. Salvador do Congo difundiu a informação de que, no dia seguinte, se verificaria um ataque da UPA.
A estranha inacção de Salazar O Governo português e as autoridades em Angola sabiam desde 1960 que a UPA ia desencadear uma ofensiva no Norte de Angola.
Mantiveram-se ambos, contudo, apáticos perante todos estes sinais de alerta, sem alterarem as suas rotinas. Ninguém foi responsabilizado. Salazar criara à sua volta um ambiente em que as verdades incómodas simplesmente não existiam.
Portugal só podia viver em paz. Os males do mundo não o atingiam.
Salazar tratava Portugal como um quintal fora de portas. Com ele a zelar por tudo, o país vivia adormecido numa ficção de que acordaria violentamente.
A ausência de reacção às notícias são um excelente revelador do salazarismo, do seu desprezo pela realidade, da incapacidade de prever e de agir em conformidade com uma dada situação, da burocracia asfixiante, da falta de respeito pelos cidadãos, do sentimento de impunidade.
Uma explicação para a inacção de Salazar é a de que o salazarismo vivia da fé. As coisas aconteciam por vontade divina. Como referiu Adriano Moreira, o Estado salazarista é um Estado beatificável.
Mas é possível uma outra interpretação, mais racional, para a ausência de reacção de Salazar a estas notícias. A sua atitude seria uma acção deliberada para provocar um efeito desejado. Salazar e o regime, esgotados e enfraquecidos após anos de poder ditatorial, ameaçados pela consolidação da nova ordem do mundo, em conflito com os aliados tradicionais, com uma Oposição interna mais forte e moralizada após a campanha de Humberto Delgado, necessitava desesperadamente de arranjar um acontecimento que unisse os portugueses à volta do regime.
Um ataque de guerrilheiros a populações indefesas era o detonador ideal.
Todos os condimentos se reuniram em Março de 1961 para excitar os ânimos: os guerrilheiros eram negros, vindos do estrangeiro, actuaram com uma rara e chocante barbaridade sobre brancos e negros, homens, mulheres e crianças.
Em abono desta tese pode apontar-se o facto de rapidamente terem sido despachados jornalistas e fotógrafos para as zonas de massacre.
Rapidamente as fotos do horror surgiram nas páginas dos jornais, mais em
Portugal do que em Angola.
A inacção do Governo de Salazar face aos sinais e às notícias que chegavam de África continua sem explicação racional até hoje. A existência da UPA era conhecida desde 1957, data da independência do Gana. A independência do Congo Belga ocorreu em Junho de 1960 e provocou uma vaga de refugiados entre a grande colónia portuguesa ali residente, mas o Governo manteve em Angola as Forças Armadas como se nada tivesse mudado, com um dispositivo de tropas ultramarinas, armadas com espingardas do início do século.
Ausência de dispositivo militar
Na zona Norte, a mais exposta aos ataques, não existia nenhuma unidade militar.
A Marinha não dispunha de uma só lancha com capacidade para patrulhar o rio Zaire, que seria uma das fronteiras por onde os guerrilheiros passariam obrigatoriamente. Para fiscalizar o grande rio, a Marinha Portuguesa dispunha apenas de um posto administrativo em Santo António do Zaire, chefiado por um sargento artilheiro, que fazia serviço de escrivão, com um sargento condutor de máquinas, um marinheiro artilheiro com funções de cabo do mar, uns civis faroleiros e uns marinheiros indígenas. A aviação militar não tinha qualquer base aérea permanente em Angola, sendo os aviões destacados das bases da Metrópole. Não existia um sistema de comunicações militares.
Não existia um sistema de logística. Não existiam sequer uniformes de combate. Não havia legislação apropriada a acções militares. A arma individual era a Mauser do início do século, ou a pistola-metralhadora FBP, fabricada em Portugal. As poucas viaturas eram GMC e jipões americanos fornecidos para equipar a divisão NATO.
Não tinham qualquer blindagem. Os únicos blindados existentes em Angola eram os EBR e os ETT Panhard, dos Dragões, mas estavam em Silva Porto, no Leste. Os EBR pesavam 15 toneladas, manobravam dificilmente nas florestas e nas picadas e o seu longo canhão não podia fazer fogo por falta de campos de tiro, o que levou os militares, mais tarde, a retirá-lo e a utilizarem as autometralhadoras como um enorme jipe blindado.
O potencial militar que existia em Angola para fazer face a uma agitação previsível resumia-se a sete companhias do Exército, cinco das quais de tropas nativas, uma fragata, dois patrulhas e um navio hidrográfico, alguns aviões de bombardeamento e reconhecimento PV-2 Harpoon e P2-V Neptune destacados da Base da Ota. No total, 9200 homens, contando com uma companhia móvel da PSP.
Na ausência de qualquer base aérea militar, os aviões da Força Aérea operavam a partir das instalações da companhia aérea civil DTA (Direcção de Transportes Aéreos). A futura Base Aérea 9 de Luanda só ficaria operacional em Maio de 1961. A construção do Aeródromo Base 3, no Negage, no Norte, começou em Fevereiro.
A Marinha, só em 1961, após o início dos acontecimentos de Angola, criaria a classe de Fuzileiros para sargentos e praças e as respectivas unidades operacionais, os destacamentos e as companhias de Fuzileiros.
Mauser
Espingarda de repetição de origem alemã (98K) adoptada em Portugal com a designação de espingarda Mauser 7,9mm m/937, e que passou a ser a arma padrão de Exército. Existiam vários modelos, e ainda um mais antigo m/904-39, originalmente de 6,5mm, depois transformado para 7,9mm.
Equipou as primeiras unidades portuguesas a seguirem para a guerra colonial.
Terror
A manhã de 15 de Março de 1961 surgiu clara em toda a região dos Dembos, no distrito angolano do Cuanza-Norte, mas no horizonte divisavam-se já as nuvens que, da parte da tarde, encharcariam as espessas matas de cafezais e deixariam as estradas e as picadas quase intransitáveis, porque nenhuma delas tinha o piso alcatroado, embora o Governo tivesse gasto milhares de contos na via que ligava Luanda a Carmona.
Nessa manhã, cerca das seis horas, o gerente da Fazenda Zalala fez o chefe do posto do Quitexe levantar-se para lhe comunicar que, na véspera, haviam fugido mais de cem homens da sua propriedade e que notava uma agitação invulgar entre os que ficaram em Nova Caipemba. O gerente regressou à sua fazenda e o chefe decidiu percorrer algumas roças da região. Tudo parecia em ordem e lembrou-se então de passar pela pequena demarcação que um colono fizera recentemente nas terras que viriam a produzir mais café.
Ao chegar, não quis acreditar no que via – o colono, um empregado e a mulher deste jaziam num charco de sangue cortados à catanada. Voltou apressadamente ao posto, alertando de passagem as outras fazendas, mas, ao cruzar-se com uns brancos que vinham do Quitexe, estes avisaram-no para não regressar ao posto, pois não ficara lá ninguém vivo.
Surpresa
A surpresa foi completa para os fazendeiros e para os funcionários administrativos que viviam na região.
De catana em riste, os atacantes perseguiram os brancos que não tinham caído logo e que corriam a buscar uma espingarda. Nalguns casos eram criados negros, alguns com anos de casa.
O Quitexe não foi a única vítima dos acontecimentos de Março de 1961.
Nambuangongo, uma outra povoação dos Dembos, sofreu um assalto idêntico e, porque ficava mais isolada, foi eleita como quartel-general dos assaltantes. Idêntica má sorte tiveram os habitantes de Quicabo, Zalala e Quimbunde, e depois Aldeia Viçosa e Vista Alegre, onde corpos de homens, de mulheres e de bebés, brancos e negros, foram retalhados à catanada.
O método de ataque foi sempre o mesmo e seria repetido nas fazendas dos Dembos e do Uíge. Os ataques eram feitos de surpresa, os revoltosos apossavam-se de todas as armas que encontravam, arrancavam as canalizações para com elas fazer canos para os canhangulos e retiravam rapidamente para as matas.
Também na região mais a norte, na fronteira com o ex-Congo Belga, entre o posto de Buela e o posto fiscal de Luvaca, ocorreram assaltos idênticos.
Foram destruídas pontes na estrada S. Salvador – Maquela e no concelho do Ambrizete ocorreu uma tentativa de assalto ao posto de Bessa Monteiro.
E de Lisboa nem uma palavra!
Em Luanda foram entretanto, apressadamente, organizados serviços de socorro e de evacuação. Centenas de mulheres e crianças vieram das regiões atingidas e ameaçadas. Dos Dembos, porém, a evacuação era mais difícil devido à falta de pistas de aterragem ou mesmo de vias de comunicação; por isso, poucos foram os colonos desta região que receberam aviso a tempo de se salvarem.
Em meia-dúzia de dias, o Norte de Angola transformou-se num mar revolto de sangue.
Calcula-se que tenham sido mortos mais de 300 europeus na área de Nambuangongo, outros tantos na zona do Dange ao Quitexe, talvez uns 200 junto à fronteira, no distrito do Congo.
Os habitantes de Luanda viveram as horas mais dramáticas da sua história contemporânea, como dizia o escritor afecto ao regime Amândio César, no seu livro Angola 1961:
“Cerca de 200 mil pretos cercam 50 000 brancos!… a polícia é mais do que exígua, os efectivos militares mais do que escassos, como ainda o poderia justificar um passado de sossego, mas já não um presente de anteriores e verificadas efervescências, que o caos em que entrara o Congo Belga só era susceptível de atear, como ateou.
Não há quem não fale dessas horas de pavor, de vigília atroz, de tiroteios constantes, com a aflição a apertar a garganta e todos dizem, baixando a voz: ‘De Lisboa não chega sequer uma palavra de esperança!’ (…)”
Um mau começo com piores consequências
A preparação deste ataque que semeou o terror indiscriminado e quase não teve resistência ocorreu no Congo, durante os primeiros meses de 1961, sob a orientação do UPA – União das Populações de Angola –, movimento influente entre os bacongos, dirigido por Holden Roberto e contando com o apoio de militares do Exército congolês.
Apesar do aparente sucesso inicial, esta foi uma acção de pesadas consequências para a credibilidade política da UPA e para a sua luta pela independência de Angola.
Os militantes da UPA não visaram nunca consolidar o domínio territorial, conseguido nos primeiros dias, nem apresentaram qualquer programa político, mas as imagens da violência cega e desmedida praticada nesses dias constituem uma mancha que marcará para sempre os seus autores e mentores e terá efeitos perversos na luta pela independência de Angola, que se prolongarão muito para além do fim da guerra contra a potência colonial.
Holden Roberto, em Nova Iorque, nas Nações Unidas, perante as imagens dos ataques, só dois dias mais tarde assumiu a sua paternidade.
Os massacres continuaram durante várias semanas, tendo morrido cerca de 800 europeus e 6000 africanos. Seguiram-se retaliações violentas por parte dos colonos brancos contra os negros, perseguidos e mortos em número indeterminado e treze anos de guerra, em três teatros de operações.
[Dos autores, Guerra Colonial. Lisboa: Editorial Notícias, 2000, pp. 24-27]
O comunicado oficial
“Verificaram-se na zona fronteiriça do Norte de Angola alguns incidentes a que deve atribuir-se gravidade por demonstrarem a veracidade de um plano destinado a promover actos de terrorismo que assegurem, a países bem conhecidos, um pretexto para continuarem a atacar Portugal perante a opinião pública internacional. (…)
Chegaram a Luanda alguns feridos que foram carinhosamente recebidos e toda
a população de Angola demonstra a mais clara determinação em colaborar com
as autoridades. (…)
Sabe-se que há a lamentar a perda de algumas vidas, mas não se conhecem pormenores. As autoridades que procedem a uma rigorosa investigação fornecerão à Imprensa mais elementos logo que sejam obtidos.
A situação encontra-se inteiramente sob o domínio das autoridades”.
[Publicado nos jornais de Angola, em 17 de Março]
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