Salazar, o primeiro e último responsável
Nas ditaduras não há dúvidas: o ditador é o primeiro e o último responsável pelo que acontece ou deixa de acontecer. Salazar é o responsável pela opção da guerra e pelo modo como ela foi conduzida até à data da sua melodramática saída de cena em 1968, na sequência do acidente vascular cerebral que o incapacitou, motivando as cenas caricatas de fazer de conta que ainda era o presidente do Conselho, com falsas audiências a falsos ministros que se prestaram ao triste papel de fazerem de conta.
Salazar e a África
A filosofia política de Salazar relativamente a África orientou-se pela ideia da missão civilizadora dos europeus, pelo fardo do homem branco, pela ideia de que os negros eram seres infantilizados, de algum modo sub-humanos, que um poder e uma civilização superiores deveriam modelar.
Nunca ocorreu a Salazar a ideia de que a necessidade de continuar a civilizar os negros após cinco séculos de colonização e de contacto com os brancos, em que sucessivamente eles tinham sido escravizados, missionados e explorados no trabalho forçado, representava a falência de cinco séculos de trabalhos civilizadores.
Salazar e os militares
Salazar assumiu o poder das mãos dos militares e viveu o seu longo consulado permanentemente desconfiado deles e inquieto com eles.
A origem militar do seu regime fez com que se preocupasse muito com a escolha das cúpulas militares e com a sua neutralização, e menos com as bases que, no seu conceito de rígida estratificação social, eram por natureza obedientes.
A sua política relativamente aos militares da alta hierarquia foi a de lhes satisfazer os apetites de modo a que não se virassem contra si e, de facto, conseguiu ambos os resultados, isto é, manteve o apoio dos chefes militares ao seu Governo e excluiu-os das decisões fundamentais da sua política. Nunca afastou os militares dos governos ultramarinos, nem de ministérios, recompensou-os com lugares na administração das grandes empresas e, com ele, o presidente da República foi sempre militar.
O grande problema de Salazar foi a guerra. Quando a guerra surgiu, a teia de cumplicidades entre Salazar e a alta hierarquia militar rompeu-se: os militares não podiam alhear-se da política pelo simples motivo de que a guerra é a continuação dela. Daí a estupefacção de Salazar perante a tentativa do seu derrube por parte de Botelho Moniz. Numa das suas reflexões diria do seu antigo ministro da Defesa: “Lembro-me de um Botelho Moniz, militar corajoso e disciplinado que combateu na Guerra Civil de Espanha, mas não deve ser este…”.
Salazar e o início da guerra – um homem cansado
Em 1961 Salazar tinha 72 anos e era já um homem cansado. Como disse Adriano Moreira, “mantinha a posse da inteligência para o entendimento das coisas e dos homens, enquanto a vontade capaz de comandar o processo e corrigir sofria progressiva deterioração”. Quando a crise de África se tornou aguda a partir de 1960, Salazar já não superava as consequências da solidão, que o deixava perplexo perante um mundo em mudança. O afastamento das pessoas impossibilitou-o de detectar as novas aspirações e tendências que atravessavam o mundo. Não conhecia as terras e as gentes de África a não ser por informações, pois nunca as visitou.
Salazar e a mudança
Para Salazar, a mudança nunca era boa. As mudanças do contexto internacional do pós-II Guerra e a explosão de novos interesses na sociedade interna, que ele não conseguia evitar, confundiram-no. O mundo e Portugal deixaram de ser aquilo que ele conhecia e, como homem de horizontes curtos, não estava munido de instrumentos para os compreender.
Apenas podia defender-se como um animal acossado.
Passou assim a correr atrás dos factos, em vez de os evitar ou determinar.
A política de Salazar tinha sido sempre defensiva. Manter Portugal e os portugueses imunes a influências estranhas. A afirmação de “orgulhosamente sós” é um grito patético de quem tem pavor do desconhecido.
Salazar e o seu Exército
Salazar preocupou-se pouco com a eficiência militar das Forças Armadas.
Eficiência, isto é, uma relação entre custo e benefício, não era um conceito familiar a Salazar. Para ele, as Forças Armadas não tinham por missão combater e vencer batalhas, mas sim servir a sua política e mantê-lo no poder. Única forma de, na sua opinião de predestinado, Portugal sobreviver.
O Exército de Salazar é, como o formatou o seu ministro Santos Costa nos anos 50, uma organização de massas, com grandes efectivos e baixa tecnologia nos equipamentos. É constituído por generais fiéis e fidelizados através de lugares bem pagos na administração das grandes empresas, de oficiais apolíticos, vegetando em quartéis inóspitos e com tempo livre para ganharem complementos aos magros soldos dando aulas em colégios, ministrando ginástica na Mocidade Portuguesa e ordem unida aos legionários, sargentos de boas contas no pagamento do pré e rígida disciplina, soldados obedientes.
A entrada de Portugal na NATO agitou um pouco a sonolência desta organização, mas quer os oficiais que participaram na modernização doutrinária, quer as novas unidades da Divisão SHAPE, não a acordaram.
Passaram, isso sim, a coexistir dois exércitos – o tradicional e o da NATO.
Será o exército NATO, com os seus oficiais e métodos, a assegurar a eficiência das Forças Armadas no eclodir da guerra, depois de terem tentado derrubar Salazar.
Salazar e a ausência de uma política de defesa
Uma política de defesa é a tradução prática da resposta às cinco tradicionais perguntas dos militares, sejam eles o soldado que sai do seu abrigo para atacar o inimigo, seja o general na sua sala de Estado-Maior: Quem? Como? Quando? Onde? Porquê?
As respostas à acção militar, por parte de Salazar como chefe de Governo e ministro da Defesa, foram sempre insatisfatórias.
Quem conduzia a política de Defesa em Portugal?
Em 1950, fruto das lições da II Guerra Mundial e da entrada na NATO, foi criado o cargo de chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas e o de ministro da Defesa Nacional. Para ultrapassar as objecções do Exército e da Marinha, não foi criado um Ministério da Defesa mas sim um ministro da Defesa, mantendo-se o Ministério do Exército e o Ministério da Marinha.
O ministro da Defesa Nacional não tinha, portanto, um ministério próprio.
Pertencia à estrutura da Presidência do Conselho de Ministros, tutelando directamente o chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas, o Secretariado-Geral da Defesa Nacional e o Subsecretariado de Estado da Aeronáutica, e exercendo uma acção de coordenação em relação aos ministros do Exército e da Marinha.
O conjunto dos organismos sob tutela directa do ministro da Defesa eram conhecidos por Departamento da Defesa Nacional. O ministro da Defesa Nacional era responsável pelo orçamento global e a condução operacional das Forças Armadas, ficando os assuntos administrativos e logísticos a cargo dos ministérios sectoriais.
Foi basicamente com esta confusa organização, em que não se encontra um responsável, que, entre 1961 e 1974, foi dirigida a Guerra do Ultramar. A única alteração significativa foi a passagem do Subsecretariado de Estado a Secretaria de Estado da Aeronáutica em 1961.
Como se fazia a guerra?
O ministro da Defesa nunca estabeleceu uma doutrina comum aos três ramos das Forças Armadas. Decisões estratégicas como a opção pela quadrícula dos territórios, a relação entre autoridades civis e militares, a divisão das tarefas entre militares e civis nos teatros de operações, a definição de prioridades de emprego de meios e forças entre ramos e entre teatros de operações, a constituição de unidades, a aquisição de meios essenciais ao combate, nada era decidido nem coordenado pelo ministro da Defesa. A maior parte das decisões eram tomadas pelos comandos locais, os comandantes das Regiões Militares e Aéreas e dos Comandos Navais, ou pelos comandantes-chefes. Algumas eram coordenadas pelos ministros do Exército e da Marinha ou pelo secretário de Estado da Aeronáutica.
Alguns exemplos: a decisão de criação das tropas especiais do Exército, os Comandos, foi, de facto, tomada em Angola, em grande parte devido à intervenção do oficial de operações da Região Militar de Angola, o então major Bettencourt Rodrigues. Os Fuzileiros foram criados por decisão exclusiva da Marinha, que não queria ficar de fora da guerra em terra.
A africanização da guerra, um dos aspectos mais delicados da guerra, foi decidida localmente e em cada território foram encontradas soluções distintas. As relações entre as Forças Armadas e a PIDE/DGS também foram estabelecidas em boa parte de forma casuística. Não havia doutrina para o efeito. Na aquisição de material reinava também o princípio de cada um por si. As aeronaves não dispunham de rádios para ligarem com as forças terrestres ou ao contrário. Os rádios dos Fuzileiros, mesmo quando do mesmo tipo dos do Exército, não possuíam frequências compatíveis. A alimentação, os vencimentos, o fardamento, eram diferentes entre os ramos, mesmo quando as forças actuavam em conjunto.
Não existia no âmbito do gabinete do ministro nenhum órgão de análise de experiências e de uniformização de procedimentos – aquilo que é habitualmente designado como um departamento de doutrina e métodos.
Os relatórios e as sínteses de cada um dos ramos eram simplesmente enviados aos outros.
Quem fazia a guerra?
Era o Exército quem principalmente fazia a guerra, com o apoio da Força Aérea e da Marinha. Durante a guerra nunca foi estabelecido o conceito e, menos ainda, a prática, da acção conjunta. As forças terrestres pediam apoio aéreo ou apoio naval para as suas operações, para a evacuação dos seus feridos, para o transporte das suas forças. Os comandos-chefe de Angola, Guiné e Moçambique só passaram a exercer um comando efectivo sobre as componentes terrestres, aéreas e navais das forças, a partir de 1968-1969, e por acção pessoal dos três generais de forte personalidade que ocuparam o cargo a partir desses anos – Spínola na Guiné, Kaúlza de Arriaga em Moçambique e Costa Gomes em Angola. Em Portugal, nunca tal conceito de integração foi posto em prática. O lugar de chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas esteve mesmo vago desde Dezembro de 1962, data da saída do general Gomes de Araújo para ministro da Defesa, até Agosto de 1968, data da nomeação do general Deslandes, depois da travessia do deserto após a saída de Angola.
Duplicação e mau emprego de meios
falta de uma política de defesa e de um conceito integrador de emprego de forças teve consequências no modo de organizar as forças portuguesas para o combate e na sua eficiência. De repente, em Maio de 1961, por determinação do comandante da Região Militar, general Silva Freire, o Exército implantou em Angola o conceito de quadrícula e semeou unidades no terreno, amarrando-as a ele. De uma força de combate, e sem qualquer decisão política de alto nível, as forças portuguesas passavam a forças de ocupação territorial. Em vez de objectivos, passavam a ter áreas de responsabilidade.
Ao optar por esta solução, o Exército deixou de poder justificar a exigência de meios que lhe garantissem elevada mobilidade. Os helicópteros foram concentrados na Força Aérea. Ora, a guerra de contra-subversão é, acima de tudo, uma guerra de mobilidade. A mobilidade exige forças ligeiras e meios que lhes proporcionem rapidez de actuação.
Desde a guerra dos franceses na Indochina e, particularmente da guerra do Vietname, que era conhecida a importância dos meios aéreos e do seu emprego em operações conjuntas com as forças terrestres. Os guerrilheiros moviam-se, o Exército instalava-se. O conceito de operação aeroterrestre só teve plena expressão dentro da Força Aérea, que dispunha das aeronaves para apoio e transporte e dos Pára-quedistas como tropas de combate.
Por que se fazia a guerra?
Esta foi a pergunta que atravessou toda a época de 1961 a 1974. A ausência de resposta foi a causa da revolta dos militares em 25 de Abril de 1974.
Os exércitos travam combates e batalhas, mas apenas participam em guerras. A guerra é um confronto político, em que cada contendor reúne todas as suas capacidades e recursos, da economia à diplomacia, da indústria às finanças, da tecnologia aos factores morais dos seus homens e mulheres para obter uma situação mais vantajosa do que a existente.
A guerra é um acto político com objectivos claros e os exércitos são apenas uma das suas componentes. Os exércitos são essenciais para fazer a guerra, mas não suficientes.
Salazar nunca disse aos militares portugueses por que faziam a guerra em África.
Disse-lhes apenas para a fazerem e manterem sob domínio político e económico português os territórios africanos demarcados na Conferência de Berlim de 1884-85. Os militares fizeram a guerra, mas sabiam que não a podiam fazer eternamente. Os militares portugueses sabiam que todas as guerras têm um fim, que toda a razão tem um tempo de concretização.
A eternização da situação colonial não era politicamente razoável e militarmente não era exequível. Não havia, pois, uma razão para a guerra.
O Exército que Salazar mandou para a guerra, e que o seu sucessor confirmou, nunca encontrou resposta para a pergunta “porquê?”.
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