1961 - O princípio do fim do império

CASSANGE

UM ACONTECIMENTO EXEMPLAR

“Os agentes da Cotonang, como reis absolutos, não permitem que os pretos se desloquem a outras zonas para irem amigar (juntar-se a uma mulher), ver a família que está doente ou tratarem de tudo aquilo que lhes é indispensável e humano, coagindo-os pela força.
Como foi possível haver tanta incúria e tanta corrupção? E tanta impunidade? Como?”.

Ponto de partida

Janeiro era o mês de começar a plantar o algodão nas plantações da Cotonang (Companhia Geral dos Algodões de Angola, SARL), uma empresa luso-belga fundada em 1926 e instalada na Baixa do Cassange, na zona de Malange. Em vez disso, milhares de agricultores entraram em greve e recusaram-se a pagar a taxa pessoal anual ao Estado português. Diziam seguir as ordens de Maria, mãe de Jesus, mas também de Kasavubu e Lumumba, respectivamente o primeiro presidente e o primeiro chefe do Governo do Congo independente.

O que começou por ser uma greve de camponeses forçados à monocultura do algodão originou uma repressão de grandes dimensões por parte das forças militares portuguesas, envolvendo Companhias de Caçadores Especiais e bombardeamentos aéreos com napalm, da qual resultaram, segundo os relatórios dos comandantes das unidades militares, entre 200 e 300 mortos e cem feridos entre os camponeses (oficialmente 173) numa acção que ficou conhecida como o massacre de Cassange.

A Baixa do Cassange

A Baixa do Cassange é uma depressão geográfica com 80 000 quilómetros quadrados que estavam, na sua maioria, cobertos por campos de algodão distribuídos pelos distritos de Malange e da Lunda. Nela viviam cerca de 35 000 agricultores e respectivas famílias, obrigados a cultivar e a vender o algodão à empresa concessionária da zona, a Cotonang, nos terrenos indicados pela empresa.

Não existiam salários e os únicos rendimentos dos agricultores só eram recebidos no final de cada campanha, com a venda obrigatória do algodão à Cotonang, que estabelecia preços reduzidos e frequentemente comprava produto de primeira classe a valores de segunda.

Se alguma cheia ou imprevisto destruía as suas lavras, a Cotonang não os compensava pela perda inesperada de um ano de trabalho nem tão-pouco lhes prestava assistência com fertilizantes ou pesticidas. Se o terreno que cultivavam começava a dar sinais de esgotamento, os capatazes da empresa forçavam-nos a deslocar-se para locais a 15 ou 20 quilómetros das suas cubatas. Os camponeses da Baixa do Cassange pouco mais eram que escravos, sendo facilmente permeáveis às ideias novas vindas do Congo independente.

Doutrinadores de Maria

Dois congoleses atravessaram a fronteira e instalaram-se na Baixa do Cassange em Dezembro de 1960, iniciando a sua doutrinação, misturando fervor nacionalista com doses maciças de misticismo. Diziam-se mandatados por Maria, nome derivado do seu inspirador António Mariano, próximo da União das Populações de Angola (UPA). As populações foram submetidas a rituais de iniciação e levadas a respeitar quinze mandamentos. As armas não abundavam e as que existiam eram obsoletas. Mas os sacerdotes diziam ao seu rebanho para não temerem as retaliações dos colonos porque as armas dos brancos apenas deitavam água.

Os protestos começaram na zona do posto administrativo de Milundo, uma das mais isoladas e com menos população branca, e alastrou a partir daí. Os camponeses queimaram as sementes fornecidas pela Cotonang, agitaram as catanas e as ferramentas de trabalho em marchas pelos caminhos de terra que dividiam os campos de cultivo, rasgaram as cadernetas de identificação, cortaram as estradas, mataram animais domésticos, destruíram pontes e jangadas nos rios Lui, Cuango e Cambo, atacaram lojas e armazéns à pedrada e invadiram as poucas missões católicas existentes em toda a região, num rebuliço que afugentou alguns comerciantes.

Na noite de 12 de Janeiro foi assassinado a tiro de zagalote um capataz mestiço da empresa, quando tentava atravessar uma sanzala do posto de Milando ocupada pelos amotinados.

O governador-geral de Angola, Silva Tavares, transmitiu para Lisboa a notícia dos distúrbios. A Cotonang exigiu que a sublevação fosse rapidamente esmagada e não se conformou com a paralisia das autoridades. A produção algodoeira encontrava-se parada. A pedido do governador-geral, as autoridades civis e militares reuniram-se em Luanda para debater a situação e concluíram pela necessidade de ocupar militarmente a região.

Na Baixa do Cassange viviam cerca de 35 00 agricultores e respectivas famílias. [MG]

Primeiras acções militares

Na madrugada de 4 de Fevereiro, dia dos distúrbios de Luanda, os homens de 4.ª Companhia de Caçadores Especiais (CCE) marcharam de Luanda para Malange, onde se reuniram à 3.ª CCE. Serão os primeiros militares a chegar à Baixa do Cassange.
Estas duas companhias, especialmente a 3.ª CCE, provocaram numerosas baixas, “umas centenas de negros” como diria o major Rebocho Vaz, comandante do Batalhão Eventual de Malange. A este número há que juntar um elevado número de mortos pela acção de aviões da Força Aérea, com a utilização, pela primeira vez, das célebres bombas incendiárias napalm a partir de aviões PV-2D Harpoon, um velho avião de luta anti-submarina adaptado para ataque ao solo. Os indiciados cabecilhas da rebelião foram presos e fuzilados na região de Gabela. A operação que pôs cobro à revolta dos camponeses da Baixa do Cassange, que começou com uma greve nos campos de algodão, transformou-se num massacre e num símbolo da luta anticolonial. Uma história de sangue, exploração e misticismo que marcou o princípio do fim do império colonial.

Embarque de um contingente de tropas para o Ultramar. [DGARQ-TT-O Século]

As baixas

Tendo os comandantes da 3.ª e da 4.ª CCE sido muito meticulosos na elaboração dos seus relatórios e tido o cuidado de contar e confirmar as baixas entre os sublevados (mortos e feridos), mesmo as causadas pela Força Aérea, podemos estimá-las entre 200 e 300 mortos e uma centena de feridos entre os revoltosos, e dois mortos e quatro feridos entre os elementos da 4.ª CCE.

A 2.ª Repartição da Região Militar de Angola, pelas informações posteriormente recebidas, acabou por contabilizar 173 feridos.

Acresce que as forças portuguesas pareciam ter um preconceito contra a Cotonang, bem patente em todos os relatórios, e a meticulosidade dos números, que as tropas entendiam ser demasiado elevados, parece um libelo acusatório contra a companhia algodoeira à qual atribuíam as culpas pela sublevação, que enfrentavam mais com relutância do que com sentido de inimizade. Também se diz, com frequência, que as forças portuguesas cometeram ali um massacre e que a desproporção de armamento era abismal.

Deve ter-se, contudo, em atenção que as armas gentílicas podiam ser tão mortíferas como qualquer outra e que centenas de amotinados, armados apenas com canhangulos e catanas, podiam causar muitas baixas entre os militares. Poderá considerar-se que os excessos militares foram provocados pelo nervosismo em que as tropas estavam a operar e pelas condições absolutamente novas em que as operações decorriam.

Coluna de jipes no Norte de Angola. [AJP]

O fim da operação

Com a evolução favorável dos acontecimentos na Baixa do Cassange, a acção operacional das forças portuguesas foi, gradualmente, cedendo lugar à acção psicológica e à assistência sanitária às populações da região. Em meados de Março, após uma pacificação total, as companhias em operações recolheram e ficaram apenas destacados elementos nos locais onde fora prevista a manutenção de efectivos militares, um pelotão em Marimba, com secções destacadas em Forte República e Tembo Aluma e um pelotão com secções destacadas em Milando e Xamuteba.

Em Malange ficou a 3.ª CCE, reforçada com quatro secções de atiradores do Regimento de Infantaria de Luanda para os destacamentos anteriores.

A 4.ª CCE recolheu a Malange e quando a 5.ª CCE chegou a esta cidade foi extinto o Batalhão de Caçadores Eventual.

O avião PV-2

Tal como os franceses na Argélia, as Forças Armadas portuguesas também transformaram aviões da II Guerra Mundial para a luta contra-guerrilha. A Força Aérea dispunha de alguns Lockheed-Vega PV-2 Harpoon, um bombardeiro ligeiro para a luta anti-submarina entre Portugal e os Açores e que era já obsoleto para esta missão. Estes aviões foram reconvertidos para missões de apoio a forças terrestres. O PV-2 básico dispunha de cinco metralhadoras de proa de 50 mm, duas no topo do nariz e três na parte inferior. O modelo PV-2D modificado dispunha de oito metralhadoras na parte inferior do nariz e podia carregar nos porões internos 3000 lb de bombas, rockets de cinco polegadas e tanques de napalm debaixo das asas. Todo o armamento defensivo foi retirado para diminuir o peso.

Avião PV-2. [AMGu]

Do Relatório do major Rebocho Vaz, comandante do Batalhão Eventual

“(…) O indígena na Baixa do Cassange vive em condições de absoluta miséria moral e material sob todos os aspectos. Resiste a essas condições de vida porque, quanto a mim, durante a sua infância, ou sucumbe à fome, às intempéries por falta de vestuário e às doenças de toda a espécie, ou vinga e se torna imune a tudo o que desde pequeno se lhe deparou e o que mais tarde há-de passar. Apelidarei isto de selecção natural.

Habitua-se desde tenra idade a não ter personalidade de gente, pois que o único contacto que lhe devia ser benéfico (o do europeu) é-lhe altamente prejudicial e só aprende a não ser roubado e espancado. Existem sanzalas inteiras, em que as águas no tempo das chuvas passam pelo leito das cubatas onde dormem e vivem, isto para satisfazerem a vontade do chefe de posto e do agente da Cotonang que muitas vezes não se querem incomodar a ir mais para o interior recolher o algodão e obrigam as sanzalas a serem implantadas quase sempre à beira das picadas e das estradas.

Chega-se, por vezes, a não se reconhecer se um determinado indivíduo pelo seu aspecto físico é homem ou mulher, se é velho ou novo. São os povos indígenas mais enfezados que conheço na Província (…).”

Depois destas considerações iniciais, o autor do relatório passa a deter-se sobre os que, em sua opinião, lidavam e roubavam descaradamente o nativo. Aponta, sem qualquer dúvida, os feiticeiros, os capatazes negros, os agentes de mato da Cotonang, os comerciantes, os cabos de cipaio e os capatazes da administração, não poupando também as autoridades administrativas de serem coniventes.

“(…) Como todos os povos subdesenvolvidos e subalimentados os povos daqui deixam-se prender por feitiços e por pretensas intervenções milagrosas e sobrenaturais. Se alguém vai à caça e não caçou qualquer peça vai ao homem dos milagres que, a troco de 20 ou 50 escudos, lhe dá um amuleto que não passa de um fio de cobre ou um simples pauzinho, garantindo-lhe que na próxima caçada terá sucesso. Se tal não suceder e for de novo procurado, o feiticeiro manda-lhe pôr um cabrito na sepultura de um parente que morreu indo de seguida roubá-lo. Perante novo inêxito, o feiticeiro recomenda outras práticas que passam sempre por extorquir dinheiro e tudo é aceite com grande naturalidade.

Levam dinheiro para os tornar imunes às investidas das feras com a promessa de que, perante o perigo, se transformarão em estátuas de pau ou de pedra, para descobrir se a mulher pratica ou não o adultério e para desvendar outros mistérios da vida das pessoas. Por tudo e por nada o negro da Baixa do Cassange solicita a intervenção sobrenatural pagando bem para isso (….)”

Soldados a bordo após o embarque. [DGARQ-TT-SNI]

Do relatório do comandante da 3.ª Companhia de Caçadores Especiais

“(…) Este relatório é meramente pessoal e reside em determinadas informações obtidas directamente in loco, carecendo ainda de total comprovação.

Durante a execução da operação Lundo, tive oportunidade de conversar directa e pessoalmente com alguns indígenas desta localidade que me pareceram mais evoluídos mentalmente. Disseram-me que tinham todos vontade de trabalhar nos campos de algodão mas gostariam que não fossem utilizados processos violentos e castigos corporais, intimando-os ao trabalho. Alguns até me mostraram cicatrizes recentes de utilização de chicote ou cavalo marinho, no seu próprio dizer e, quanto a mim – que as observei pessoalmente –, pareceram-me efectivamente causadas por chicote. (…)

Outro aspecto importante é o de fome, melhor dizendo, carência alimentar ou subnutrição. Disseram-me também que não comiam o suficiente; na verdade, no momento em que ocorreu esta conversação, como em muitos outros locais já por mim percorridos, tive oportunidade de verificar a escassez alimentar do indígena, agora mais agravada pelo facto de lhes terem destruído muitas culturas e morto quase toda a criação que tinham, em cumprimento de uma determinação de Maria. Porém, antes destes acontecimentos da Baixa do Cassange, já em patrulhamentos anteriores tinha verificado a subalimentação do indígena, mormente em determinadas zonas nela integradas.

Estou convencido que, pelo que me foi dado observar e ouvir pessoalmente, a carência alimentar e o exagero ou excesso de castigos corporais terão contribuído, no todo ou em parte, para uma excitabilidade gradual do indígena, completada, ou levada ao clímax, por infiltrações na Baixa do Cassange de agentes subversivos, vindos do exterior, tendentes exactamente a explorar este clima psicológico indígena.

Há um outro aspecto correlativo fundamental: a necessidade imperativa de uma medicação periódica do indígena (…) o facto é que me parece imperativo que ela seja intensificada, em toda e qualquer sanzala da Baixa, mormente, evitando epidemias, casos flagrantes de avitaminoses tão frequentes e doenças infecto-contagiosas(…)”.

“(…) Operação ‘Truta’ (região de Monte Papo): a primeira que a companhia realizou: após o bombardeamento efectuado ontem tive conhecimento, por intermédio do chefe de posto de Iongo, que foram mortos muitos indígenas e enviei um emissário para Donga, a fim de averiguar ali os resultados da acção aérea. Foram confirmados 11 mortos e 21 feridos (…).”

“(…) Operação ‘Raia’ (região de Muanha): avistámos à volta do armazém da Cotonang uma multidão de pretos reunidos. Aproximámo-nos a cerca de 50 metros; mandei chamar o soba Muanha, mas ele respondeu-me que “fosse lá eu”…; insisti novamente, dizendo-lhe que haveria muitos mortos se ele não comparecesse perante mim. Voltou as costas, dizendo que era Deus e que só obedecia a Maria, começando a referir-se com violência aos brancos. Mandei abrir fogo, indicando como alvos principais o soba e os agitadores que estavam com ele; caíram todos e os outros, querendo reagir, foram abatidos também.

(…) Foi capturada grande quantidade de material, entre catanas, espingardas, azagaias e facas (resultado: 60 mortos e 80 espingardas e 150 catanas apreendidas, cf. Sitrep 23/24 do Batalhão Eventual). A acção teve consequências imediatas porquanto o pessoal das sanzalas vizinhas começou a regressar às cubatas, normalizando-se a situação nessa zona.”

“(…) Operação ‘Limão’ (região de Cuango): deparei com 200 indígenas sentados no chão em atitude de oração, com o soba maior e sobetas. Não se mexeram; mandei chamar o soba maior e os sobetas, os quais vieram logo.

Disse-lhes para entregarem todas as armas, o que fizeram a seguir: 130 catanas, 74 azagaias, 19 espingardas e alguns punhais (…).

Tudo se transformou numa alegre reunião de brancos e pretos, numa verdadeira e franca confraternização. Não houve um único tiro disparado. Expliquei-lhes também que deviam recomeçar o trabalho do algodão, o que prometeram fazer imediatamente (…).”

Colheita do café com protecção militar. [DGARQ-TT-Flama]

Do relatório da 4.ª Companhia de Caçadores Especiais

“(…) [Em Quela] dei ordem de fogo às duas metralhadoras e à bazuca, que já havia mandado preparar com uma granada explosiva. O tiroteio foi infernal, ouvindo-se tiros por todos os lados, mesmo dos homens do pelotão que se encontravam a proteger o flanco. As primeiras linhas dos revoltosos começaram a cair, sempre cantando e dizendo “agora podemos abrir fogo” e ouviram-se alguns tiros. A bazuca abriu no meio deles uma grande clareira e, sob continuação da intensa metralha, o grupo foi caindo sempre a cantar, verificando-se já algumas tentativas de fuga. Ordenei alto ao fogo, sendo necessário gritar e apitar intensamente, no que fui ajudado pelo senhor alferes Condesso, que se encontrava ao meu lado. Após tudo serenado, verifiquei que os homens se encontravam lívidos e que alguns haviam até disparado para o ar, sendo necessário andar a acalmá-los e a encorajá-los. O balanço total das baixas foi de um morto e quatro feridos no nosso pessoal e de 71 mortos e 41 feridos entre os indígenas revoltados (…).” (cf. relatório de 6 de Fevereiro do comando da companhia).

Progressão difícil de uma coluna no Norte de Angola. [AHM]

“(…) [Em Cunda] a cerca de 300 metros da sanzala levantou-se um enorme alarido para os lados da sanzala, que se transformou em coro de cânticos a Maria.

Ordenei que os pelotões formassem em linha e continuei o avanço com o capim pela cintura e em terreno alagado. A cerca de cem metros mandei parar o avanço, porque, agora com o campo de observação desimpedido do capim, verifiquei que junto à casa do soba estavam reunidos cerca de 10 000 indígenas, homens, mulheres e crianças, encontrando-se os homens armados. Com a ajuda do intérprete, senhor Frade, que me acompanhava, soube que estavam a fazer uma jura de guerra perante o soba e se preparavam para nos atacar.

Ordenei a um sargento que voltasse atrás e que num jipão viesse pedir reforços de mais um pelotão e a secção de morteiros.

Entretanto, o intérprete procurava parlamentar com o soba, mas quem lhe respondia, à frente do bando, era o feiticeiro.

Para os amedrontar, mandei lançar quatro granadas de mão ofensivas e uma granada de bazuca, que rebentaram em frente à sanzala, levantando-se um grande alarido, seguido de um coro. Traduzido pelo intérprete, diziam que a Maria lhes falava verdade e que as armas dos brancos nada lhes faziam.

Chegados à entrada da sanzala, o senhor Frade, que se encontrava a meu lado, subiu a um poste e chamou novamente o soba a fim de parlamentar, mas o feiticeiro interpunha-se sempre. Então o senhor Frade pediu uma das nossas espingardas e, apontando cuidadosamente, abateu o feiticeiro.

Soldados num descanso junto a uma povoação destruída. [DGARQ-TT-Flama]

Imediatamente outro indígena o substituiu, que vim mais tarde a saber ser o filho do soba, futuro substituto do pai. Outro guia, que também me acompanhava, senhor Leonel, pediu uma espingarda a um soldado, apontou com cuidado e abateu esse indígena com um tiro numa coxa.

Os cânticos redobraram e mandei então fazer um tiro de bazuca para a frente do grupo, mas as três granadas não funcionaram, pelo que desisti.

Pegando eu próprio numa metralhadora ligeira, de um cabo que se encontrava a meu lado, em posição de tiro e marchando, executei uma rajada por cima do grupo. Começaram a dizer que as nossas armas “só deitavam água”, o que me levou a concluir que água para eles é “nada”.

Acabei por despejar esse carregador com tiros para o tecto da casa do soba. Levantaram-se gritos que traduzidos pelo intérprete diziam que iam atacar. Metendo novo carregador na metralhadora, fiz fogo directo sobre o grupo dispersando-se o mesmo aos gritos. Uma nuvem de indígenas armados fugiu na direcção de este e o grupo mais pequeno na direcção do norte. Tendo mandado avançar os dois pelotões em linha, revistando as palhotas, aproximei-me do centro da sanzala. Verifiquei então que cerca de 300 mulheres, muitas crianças e velhos se encontravam reunidos por detrás da casa do soba, acompanhados por uns cem homens que não tiveram tempo de fugir, quase todos eles armados.

No chão, ferido, encontrava-se o Chirimbimbe, filho do soba da região, com um tiro na coxa, como aliás atrás foi dito. Tendo mandado ao senhor Frade fazer uma prelecção aos amotinados sobre o grave incidente que motivaram, tornando-os responsáveis pelas mortes já feitas, esbofeteei o soba grande que caiu para o chão, mandando-o amarrar com os seus sobas e sobetas. Seguidamente mandei transportar para esta povoação os feridos em padiolas, pelos homens prisioneiros que saíram à frente do enorme grupo de mulheres, crianças e velhos.

Comigo seguiram os sobas e sobetas amarrados. O balanço das baixas foi de quatro mortos e quatro feridos. Mandei tratar dos feridos e fazer comida para o pessoal aprisionado. Tendo falado aos prisioneiros, por intermédio do intérprete, concordaram que haviam sido enganados e que os culpados tinham sido os maholos. Fiz seguir vários emissários para as sanzalas dos sobas principais da região, ordenando-lhes a sua presença imediata e entrega das armas levando como amostra um cartucho completo de espingarda, dizendo-lhes que a Maria não transformava aquele ferro em água.

Pela tarde apareceram nesta povoação, a apresentar-se, uma enorme quantidade  de sobas e sobetas com armas trazidas das suas sanzalas. Um ex-soldado indígena, que prestara serviço em Macau, apresentou-se-me também como enviado de um soba, trazendo um molho de armas gentílicas. Aguardo para amanhã a chegada de mais sobas, que enviaram à sua frente os seus emissários, dizendo que devido à idade tinha sido impossível apresentarem-se hoje. Quartel em Cunda, 8 de Fevereiro de 1961(…).”

Bazuca (bazooka) – É uma arma anticarro, originalmente orgânica dos pelotões de atiradores (Infantaria). Basicamente constituída por um tubo aberto das duas extremidades, com um visor de tiro, que dispara uma granada-foguete com carga oca (HEAT).

Foi adoptada em Portugal com a designação de Lança Granadas Foguete de 8,9cm m/952, sendo portanto uma das armas recebidas quando da remodelação decorrente da adesão à OTAN.

Arma essencialmente anticarro, tinha reduzido efeito antipessoal, mas um efeito psicológico grande. A sua utilização foi mais uma adaptação, por falta de um lança granadas apropriado.

Soldado com bazuca, uma arma anticarro. [AHM]

Do relatório da operação feito em 17 de Fevereiro pelo major Rebocho Vaz (Plano de Operações nº 3 – Operação Cassange)

“(…) O elevado moral da 4.ª CCE, o espírito de decisão do comandante e das tropas e ainda o bom senso e equilíbrio revelados na resolução de incidentes graves, limitaram o número de baixas sofridas pelos indígenas. Houve sempre o propósito de causar o mínimo de mortos ou feridos e, sempre que houve necessidade imperiosa de abrir fogo, procurou-se fazer pontaria baixa. Este facto reflectiu-se nos feridos apresentados no hospital de Malange, que têm, na grande maioria, ferimentos nas pernas. Também nessas ocasiões se procurou sempre abater, em primeiro lugar, os indivíduos que, nitidamente, se destacavam como cabecilhas.

É de realçar a ajuda prestada por civis, utilizados como pisteiros e conselheiros nas relações com os indígenas, em especial a do Sr. Frade, de Malange. Actualmente julga-se que ainda é necessário manter, por um período razoável, uma ocupação na zona pacificada com a finalidade de mostrar aos indígenas que as Forças Armadas estão atentas e dar aos europeus a confiança necessária para retomarem as suas actividades comerciais. Também servirá para mostrar aos povos gingas que o Estado está pronto a protegê-los contra a influência perniciosa dos maholos que, antes da pacificação, chegou a atingir graves aspectos (obrigaram alguns sobas gingas a aderir).

Seria de encarar a hipótese de as Autoridades Administrativas substituírem todos os sobas que se sublevaram. Teria também uma influência extraordinária na atitude dos maholos se lhes tirassem a concessão que têm sobre as minas de sal gema existentes na região de Milando. Segundo informações, dessas minas exportavam sal praticamente para toda a Baixa e até para a República do Congo. Bastaria atribuir, como castigo temporário ou definitivamente, essa concessão aos povos bondo e bangala (que parece que foram os primeiros concessionários) para que material e psicologicamente os maholos fossem muito atingidos e sentissem o castigo imposto.

Tem de se encarar desde já a necessidade urgente de se acudir com alimentos às populações indígenas. A parcial destruição das culturas, a morte do gado e dos cães, a apreensão das armas normalmente utilizadas na caça, irão provocar, sem dúvida, uma crise gravíssima. É opinião geral que a miséria é enorme e que muitos morrerão à fome se não houver uma acção centralizada de auxílio em alimentos. Esta acção, além do fundamental aspecto humanitário, teria também paralelamente um efeito psicológico decisivo sobre as populações, que foram arrastadas a esta situação por agitadores que, habilmente, exploravam condições locais péssimas, originadas pelos indiscutíveis abusos dos agentes das empresas concessionárias e até das Autoridades Administrativas (…).”

Soldado num posto de vigilância, com espingarda G-3, que seria adoptada mais tarde. [AHM]

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