06/03/1973 -

Carta de António de Spínola a Marcelo Caetano sobre a evolução da situação na Guiné e a necessidade de medidas de natureza política.

Spínola tenta mais uma vez convencer Marcelo Caetano da necessidade de proceder a reformas políticas que vão no sentido da maior autonomia das colónias e incentiva-o com alguns elogios:

“A ascensão de Vossa Excelência à Presidência do Governo em 1968 abriu à Nação novas perspectivas de solução do problema nacional; perspectivas em que se inseriu a linha política em que, desde a primeira hora, baseei a minha acção de governo. A partir de então tive a preocupação de aproveitar todas as oportunidades para manifestar publicamente a minha total identificação com o pensamento político de Vossa Excelência, em hora feliz sintetizado nas fórmulas unidade na diversidade e autonomia progressiva, únicas a meu ver portadoras de uma solução para o problema do Ultramar.”

Mas Spínola sentia, agora, em 1973, dúvidas sobre a solidez do apoio de Marcelo Caetano a esta via autonomista e sentia ainda a reacção do grupo organizado atrás de Américo Tomás que se opunha a qualquer mudança:

“Até determinada altura nunca senti qualquer hesitação da parte do Governo central no apoio às medidas por mim tomadas, medidas que, afinal, não eram mais do que a concretização daquele pensamento.

Todavia, a partir do período que antecedeu as últimas eleições presidenciais, foi criado um clima de desconfiança em volta da minha pessoa, em que se chegou ao desplante de pôr em dúvida o meu patriotismo!”

Além de lamentar que o Governo da Guiné não tenha sido consultado durante a feitura da Lei Orgânica do Ultramar e da Lei das Terras, Spínola questiona Marcelo Caetano sobre os fundamentos da política ultramarina e sobre o futuro dela. São as questões que vêm da conversa que ambos tiveram em Lisboa onde Marcelo Caetano proibiu Spínola de prosseguir os contactos com Senghor para chegar a Amílcar Cabral e ao PAIGC.

Spínola percebe que Caetano não tem qualquer solução para o problema colonial a não ser a continuação da guerra e, com lealdade, diz-lho. Esta é uma declaração de ruptura:

“Abordou Vossa Excelência problemas de fundo nas duas últimas conversas que tivemos.

E esses é que me vêm preocupando, atenta a possibilidade de se vislumbrar, através das opiniões escutadas, a intenção de rever determinados princípios em que baseei a minha acção política na Guiné.

Afirmou-me Vossa Excelência que, tendo os africanos optado pela intolerância face à presença do branco, qualquer solução política corresponderia a apressar a nossa saída de África, de onde é legítimo concluir que apenas nos resta impor pela força das armas; ouvi também a Vossa Excelência a opinião de que mais facilmente aceitaria uma derrota militar na Guiné do que uma solução política que implicasse quaisquer concessões; e, anteriormente, já Vossa Excelência, perante a perspectiva de um cessar-fogo (a proposta de Senghor), me tinha expressado a opinião de que considerava inconveniente o termo da guerra da Guiné por tal facto originar a deslocação da luta para Cabo Verde”.

Spínola expressava a sua apreensão por estas opções de Marcelo, que ele “julgava totalmente arredadas do espírito de Vossa Excelência”:

“Uma tal hipótese, a meu ver só nos oferece como alternativa o prolongamento da actual situação de desgaste até que a Nação se esgote ou, a exemplo da Índia, sobrevenha uma derrota militar, que outras alternativas não vejo se nos ofereçam na hipótese de rejeição das soluções políticas”.

Na longa carta, Spínola defendia a solução federativa. Mas já num registo de quem quer deixar um testemunho para a História, explica o que poderia ter sido. As duas notas de registo já se situam num outro plano: no do aviso a Marcelo Caetano para ter cuidado com os militares. Os dos quadros metropolitanos e os que ele promovia na Guiné. Spínola começa por se referir à ferida que a Índia deixou nos militares, afirmando: “Podíamos permanecer na Índia se outra tivesse sido a visão das realidades” e lança um aviso relativamente ao modo como os políticos trataram então os soldados da Índia, para que Marcelo não tentasse repetir:

“Julgaram-se então os responsáveis directos pelos erros que possam ter cometido. Mas o facto histórico foi a amputação de uma parcela que ainda poderia estar ligada a Portugal, embora noutro contexto e fomos conduzidos a tal situação por se ter permitido que a solução repousasse exclusivamente no sector em que a sua inviabilidade era evidente”.

Um pouco adiante na carta, Spínola refere os seus militares da Guiné e o processo de africanização que ele sentia estar a ser posto em causa:

“E, face à atitude geral das tropas que chegavam à Guiné era legítimo concluir que o País despertara para a nova luz que se acendia: o início da construção de sociedades eminentemente africanas que conservam no seu seio o germe da portugalidade…

A esta linha de pensamento foi dada efectiva concretização na política de africanização de estruturas aqui em curso, política que teve sempre o aval de Vossa Excelência e que apenas se compreenderá à luz do contexto que se anteviu; pois, se assim não fosse, teríamos de convir que o crescente aumento da força africana não passará de um contra-senso. E é evidente que não passará desapercebido aos africanos, mormente aos quadros e tropas das suas unidades, qualquer retrocesso…”.

Depois dos ataques a Guidage e da queda de Guileje, em Maio, confirmada a incapacidade das forças portuguesas de manterem a posse de parcelas significativas do território, mas antes da declaração unilateral de independência por parte do PAIGC, Spínola deixará o Governo da Guiné e o Comando-Chefe das suas Forças Armadas em Agosto.